sexta-feira, 28 de junho de 2013

dicionário de filosofia - sobre ciência

algumas palavras do dicionário de filosofia de Nicolas Abagnano



MÉTODO (gr. uieoôoç; lat. Methodus; in. Method; fr. Méthode, ai. Methode, it. Método). Este termo tem dois significados fundamentais: 1Q qualquer pesquisa ou orientação de pesquisa; 2- uma técnica particular de pesquisa. No primeiro significado, não se distingue de "investigação" ou "doutrina". O segundo significado é mais restrito e indica um procedimento de investigação organizado, repetível e autocorrigível, que garanta a obtenção de resultados válidos. Ao primeiro significado referem-se expressões como "M. hegeliano", "M. dialético", etc, ou mesmo "M. geométrico", "M. experimental", etc. Ao segundo significado referem-se expressões como "M. silogístico", "M. residual" e, em geral, os que designam procedimentos específicos de investigação e verificação. Tanto Platão (Sof, 218 d; Fed., 270 c) quanto Aristóteles (Pol, 1289 a 26; Et. nic, 1129 a 6) empregam esse termo em ambos os significados; no moderno e contemporâneo, prevalece o segundo. Contudo, é preciso observar que não há doutrina ou teoria, quer científica quer filosófica, que não possa ser considerada sob o aspecto de sua ordem de procedimentos, sendo, pois, chamada de M. O próprio Descartes, p. ex., expôs o mesmo conteúdo do Discurso do método na forma de Meditações metafísicas e de Princípios de filosofia: o que por um lado era M., por outro era doutrina. De modo geral, não há doutrina que não possa ser considerada e chamada de M., se encarada como ordem ou procedimento de pesquisa. Portanto, a classificação dos M. filosóficos e científicos sem dúvida seria uma classificação das respectivas doutrinas. Quanto às doutrinas que com mais freqüência ou razão são chamadas de M., v. os capítulos respectivos: ANÁLISE; AXIOMATIZAÇÃO; CONCOMITÂNCIA; CONCORDÂNCIA; DEDUÇÃO; DIALÉTICA; DIFERENÇA;   DEMONSTRAÇÃO;  INDUÇÃO;  PROVA;  RESÍDUOS; Silogismo; Síntese; bem como os verbetes dedicados a cada disciplina: Filosofia;


METODOLOGIA (in. Methodology, fr. Mé-thodologie, ai. Methodologye, Methodenlehre, it. Metodologia). Com este termo podem ser designadas quatro coisas diferentes: Ia lógica ou parte da lógica que estuda os métodos; 2a lógica transcendental aplicada; 3a conjunto de procedimentos metódicos de uma ou mais ciências; 4a a análise filosófica de tais procedimentos.
Ia A lógica foi interpretada como M. na fase pós-cartesiana. Segundo a Lógica de Port-Royal, "a lógica é a arte de bem conduzir a própria razão no conhecimento das coisas, tanto para instruir-se quanto para instruir aos outros". No mesmo sentido, Wolff definia a lógica como "a ciência de dirigir a faculdade cognoscitiva no conhecimento da verdade" {Log., § 1). Esse conceito de lógica pode ser encontrado também na definição de Stuart MUI, como "ciência das operações do intelecto que servem para a avaliação da prova" {Logic, Intr., § 7). Por outro lado, a M. também foi considerada uma parte da lógica. Pedro Ramus dividia a lógica em quatro partes: doutrina do conceito, do juízo, do raciocínio e do método (Dialecticae institutiones, 1543); essa divisão, aceita pela Lógica de Port-Royal, tornou-se tradicional e foi constantemente adotada pela lógica filosófica do séc. XIX (v. para todos Benno Erdmann, Logick, 1892,1, § 7). Apartir de Wolff (Log., §§ 505 ss.), a_jd_outrina do método foi freç|üejite^rii£nte_£haínada de lógica prática,
2- A M. foi entendida por Kant como lógica transcendental aplicada ou "prática". Constitui a segunda parte principal da Crítica da Razão Pura, cujo objetivo é "determinar as condições formais de um sistema completo da razão pura"; compreende uma disciplina, um cânon, uma arquitetura e, finalmente, uma história da razão pura. O próprio Kant confronta essa parte de sua obra com a lógica formal aplicada ou prática: "Do ponto de vista transcendental, faremos o que se procurou fazer nas escolas com o nome de lógica prática em relação ao uso do intelecto em geral, mas que se fez mal, porque, não se limitando a um modo especial de conhecimento intelectual (p. ex., o puro), nem a certos objetos, a lógica geral nada mais pode fazer senão propor títulos de métodos possíveis e de expressões técnicas" (Crít. R. Pura, Doutr. transe, do método, Intr.).
3a Com o nome de M. hoje é freqüentemente indicado o conjunto de procedimentos técnicos de averiguação ou verificação à disposição de determinada disciplina ou grupo de disciplinas. Nesse sentido fala-se, p. ex., de "M. das ciências naturais" ou de "M. historiográfica". Nesse aspecto, a M. é elaborada no interior de uma disciplina científica ou de um grupo de disciplinas e não tem outro objetivo além de garantir às disciplinas em questão o uso cada vez mais eficaz das técnicas de procedimento de que dispõem.
4a Por outro lado, em estreita conexão com o sentido acima, a M. vem-se constituindo como disciplina filosófica relativamente autônoma e destinada à análise das técnicas de investigação empregadas em uma ou mais ciências. Nesse sentido, não são objetos da M. os "métodos" das ciências, ou seja, as classificações amplas e aproximativas (análise, síntese, indução, dedução, experimentação, etc), nas quais se inserem as técnicas da pesquisa científica, mas tão-somente essas técnicas, consideradas em suas estruturas específicas e nas condições que possibilitam o seu uso. Tais técnicas compreedem, obviamente, qualquer procedimento lingüístico ou operacional, qualquer conceito e qualquer instrumento que uma ou mais disciplinas utilizem na aquisição e na verificação de seus resultados. Nesse sentido, a M. é sucessora d) da metafísica, porque a ela cabem os problemas que concernem às relações entre as ciências e as zonas de interferência (e algumas vezes de conflito) entre ciências diferentes; b) da gnosiologia, porquanto substitui a consideração do "conhecimento", entendido como forma global da atividade humana ou do Espírito em geral, pela consideração dos procedimentos cognoscitivos utilizados por um ou mais campos da investigação científica. Essa M. chama-se também "crítica das ciências". Embora o trabalho realizado por ela nessa direção e iniciado nas primeiras décadas do séc. XX já seja considerável, está faltando até agora uma determinação precisa da tarefa e das orientações dessa disciplina. Cf. todavia autores vários, Fondamenti logici delia scienza, Turim, 1947; id., Saggi di critica deUe scienze, Turim, 1950: ambos org. pelo Centro di Studi Metodologia di Torino.




CIÊNCIAS, CLASSIFICAÇÃO DAS (in Classification of sciences; fr. Classification des sciences; ai. Klassifikation der Wissenschafte, it. Classificazione delle scienzé). Enquanto uma enciclopédia (v.) é a tentativa de dar o quadro completo de todas as disciplinas científicas e de fixar de modo definitivo as suas relações de coordenação e subordinação, uma classificação das C. tem só o intuito mais modesto de dividir as C. em dois ou mais grupos, segundo a afinidade de seus objetos ou de seus instrumentos de pesquisa. É óbvio que as enciclopédias das C. também podem ser consideradas simples classificações, mas algumas classificações simples, feitas pelos filósofos do século XIX, foram muito mais eficazes nesse trabalho científico. A mais famosa de todas é a proposta por Am-père, de C. do espírito, ou noológicas, e C. da natureza, ou cosmo lógicas (Essai sur Ia philosopbie des sciences, 1834). Essa classificação foi amplamente aceita e, às vezes, reexpressa com outros termos, p. ex., como distinção entre C. culturais e C. naturais (Du Bois-Reymond, Kulturgeschichte und Naturnissenschaften, 1878). Para a sua difusão a maior contribuição foi de Dilthey, que, em Introdução às ciências do espírito (1883), insistiu na diferença entre as ciências que visam conhecer casualmente o objeto, que permanece externo, isto é, as C. naturais, e as que, ao contrário, visam compreender o objeto (que é o homem) e a revivê-lo intrinsecamente, isto é, as C. do espírito. Win-delband, por sua vez, fazia distinção entre C. nomotéticas, que procuram descobrir leis e dizem respeito à natureza, e C. idiogrãficas, que têm em mira o indivíduo, em determinação histórica e como objeto a história (Geschichte und Naturwissenschaften, 1894, e depois nos Prâludierí). Rickert exprimia a mesma diferença com mais felicidade afirmando que as C. da natureza têm caráter generalizante, ao passo que as C. do espírito têm caráter individua-lizante (Die Grenzen der naturwissenschaft-lichen Begriffsbildung, 1896-1902, pp. 236 ss.) (v. Historiografia).
De outro ponto de vista, Comte distinguira duas espécies de C. naturais: as C. abstratas ou gerais, que têm por objeto a descoberta das leis que regem as diferentes classes de fenômenos, e as C. concretas, particulares, descritivas, que consistem na aplicação dessas leis à história efetiva dos diferentes seres existentes (Cours dephil. positive, 1830, I, II, § 4). Spencer retomava essa distinção e, por sua vez, dividia todas as C. em abstratas (lógica formal e matemática), abstrato-concretas (mecânica, física, química) e concretas (astronomia, mineralogia, geologia, biologia, psicologia, sociologia) (The Classification of the Sciences, 1864). E Wundt simplificava essa classificação, reduzindo-a a dois grupos apenas: o das C. formais (lógica e matemática) e o das C. reais (C. da natureza e do espírito) (System der Philosophie, 1889). Pouco diferente desta é a classificação triádica de Ostwald em C. formais, C. físicas e C. biológicas (Gundriss derNaturphilosophie, 1908). A distinção entre C. formais e C. reais ainda é amplamente aceita. R. Carnap a repropôs com o fundamento de que as C. formais só conteriam asserções analíticas e as C. reais, ou factuais, conteriam também asserções sintéticas (em Erkenntniss, 1934, n. 5; agora em Readings in the Philosophy of Science, 1953, pp. 123 ss.).
Como nota Carnap, assim interpretada, essa classificação deixa intacta a unidade da C, pois "as C. formais não têm absolutamente objeto: são sistemas de asserções auxiliares sem objeto e sem conteúdo" (Ibid., p. 128).
Essas últimas palavras de Carnap explicam-se tendo em mente que hoje não se pode conferir caráter absoluto ou rigoroso à distinção entre as várias C. As palavras seguintes de Von Mises exprimem bem o ponto de vista mais corrente sobre o assunto: "Qualquer divisão e subdivisão das C. tem apenas importância prática e provisória, não é sistematicamente necessária e definitiva, isto é, depende das situações externas em que se realiza o trabalho científico e da fase atual de desenvolvimento de cada disciplina. Os progressos mais decisivos muitas vezes se originaram do esclarecimento de problemas que se encontram nos limites entre setores até então tratados separadamente" (Klei-nes Lehrbuch des Positivismus, 1939, V, 7).



CONHECIMENTO (gr. Yvüxtiç; lat. Cognitio, in. Knowledge, fr. Connaissance, ai. Erkennt-niss; it. Conoscenzd). Em geral, uma técnica para a verificação de um objeto qualquer, ou a disponibilidade ou posse de uma técnica semelhante. Por técnica de verificação deve-se entender qualquer procedimento que possibilite a descrição, o cálculo ou a previsão controlável de um objeto; e por objeto deve-se entender qualquer entidade, fato, coisa, realidade ou propriedade. Técnica, nesse sentido, é o uso normal de um órgão do sentido tanto quanto a operação com instrumentos complicados de cálculo: ambos os procedimentos permitem verificações controláveis. Não se deve presumir que tais verificações sejam infalíveis e exaustivas, isto é, que subsista uma técnica de verificação que, uma vez empregada em relação a um C. x, torne inútil seu emprego ulterior em relação ao mesmo C, sem que este perca algo de sua validade. A controlabilidade dos procedimentos de verificação, sejam eles grosseiros ou refinados, significa a repetibilidade de suas aplicações, de modo que um "C" permanece como tal só enquanto subsistir a possibilidade da verificação. Contudo, as técnicas de verificação podem ter os mais diversos graus de eficácia e podem, em última instância, ter eficácia mínima ou nula: nesse caso, perdem, de pleno direito, a qualificação de conhecimento. "O C. de x " significa um procedimento capaz de fornecer algumas informações controláveis sobre x, isto é, que permita descrevê-lo, calculá-lo ou prevê-lo em certos limites. A disponibilidade ou a posse de uma técnica cognitiva
designa a participação pessoal dessa técnica. "Conheço x" significa (salvo limitações) que sou capaz de pôr em prática procedimentos que possibilitem a descrição, o cáculo ou a previsão de x. Portanto o significado pessoal ou subjetivo de C. deve ser considerado secundário e derivado: o significado primário é objetivo e impessoal, como acima exposto. Esse significado primário também permite fazer facilmente a distinção entre crença e C: a crença (v.) é o empenho na verdade de uma noção qualquer ainda que não verificável; o C. é um procedimento de verificação ou a participação possível em tal procedimento.
Como procedimento de verificação, qualquer operação cognitiva visa a um objeto e tende a instaurar com ele uma relação da qual venha a emergir uma característica efetiva deste. Portanto, as interpretações do C. que foram dadas ao longo da história da filosofia podem ser consideradas interpretações dessa relação e, como tal, resumir-se em duas alternativas fundamentais: Ia essa relação é uma identidade ou semelhança (entende-se por semelhança uma identidade fraca e parcial) e a operação cognitiva é um procedimento de identificação com o objetivo ou de reprodução dele; 2a a relação cognitiva é uma apresentação do objeto e a operação cognitiva é um procedimento de transcendência.
Ia A primeira interpretação é a mais comum na filosofia ocidental. Pode, por sua vez, ser dividida em duas fases diferentes: A) na primeira, a identidade ou a semelhança com o objeto é entendida como identidade ou semelhança dos elementos do C. com os elementos do objeto: p. ex., dos conceitos ou das representações com as coisas; B) na segunda fase, a identidade ou a semelhança restringe-se à ordem dos respectivos elementos: nesse caso, a operação de conhecer não consiste em reproduzir o objeto, mas as relações constitutivas do próprio objeto, isto é, a ordem dos elementos. Na primeira fase, o C. é considerado itnagemou retrato do objeto; na segunda fase, tem com o objeto a mesma relação que um mapa tem com a paisagem que representa.
Á) A primeira fase constitui a forma como a doutrina do C. surgiu no mundo antigo, ou seja, como identificação. Os pré-socráticos exprimiram-se com o princípio de que "o semelhante conhece o semelhante", pelo qual Empédocles afirmava que conhecemos a terra com a terra, a água com a água, etc. (Fr. 105, Diels). Podem ser consideradas variantes desse princípio tanto a afirmação de Heráclito, "o que se move conhece o que se move" (Aristóteles, De an., I, 2, 405 a 27), quanto a de Ana-xágoras, segundo a qual "a alma conhece o contrário com o contrário" (Teofr., De sens., 27). Esta última na realidade parece aludir mais a uma condição do C. — que pressupõe a diversidade como dirá Aristóteles (De an., II, J, 417 a 16) — do que ao próprio ato cognitivo, como indica a justificação que lhe é dada: "o semelhante, com efeito, não pode sofrer a ação do semelhante". Mas foram Platão e Aristóteles que estabeleceram em bases sólidas essa interpretação do conhecimento. O encontro do semelhante com o semelhante, a homogeneidade, são os conceitos que Platão utiliza para explicar os processos cognitivos (Tim., 45 c, 90 c-d): conhecer significa tornar o pensante semelhante ao pensado. Conseqüentemente, os graus de C. modelam-se segundo os graus do ser: não se pode conhecer com certeza, isto é, com "firmeza" o que não é firme, porque o C. só faz reproduzir o objeto; por isso "o que é absolutamente é absolutamente cognoscível, enquanto o que não é de nenhum modo de nenhum modo é cognoscível" (Rep., 47 a). Dessa maneira, Platão estabeleceu a correspondência entre ser e ciência, que é o C. verdadeiro; entre não ser e ignorância; entre devir, que está entre o ser e o não ser, e opinião, que está entre o C. e a ignorância. E distinguiu os seguintes graus do C: ls suposição ou conjectura, que tem por objeto sombras e imagens das coisas sensíveis; 2a a opinião acreditada, mas não verificada, que tem por objeto as coisas naturais, os seres vivos e, em geral, o mundo sensível; 3Q razão científica, que procede por via de hipóteses e tem por objeto os entes matemáticos; 4S inteligência filosófica, que procede dialeticamente e tem por objeto o mundo do ser (Ibid., VI, 509-10). Cada um desses graus de C. é a cópia exata do seu respectivo objeto: de modo que não há dúvida de que, para Platão, conhecer é estabelecer uma relação de identidade com o objeto em cada caso, ou uma relação que se aproxime o máximo possível da identidade. De forma ainda mais rigorosa esse ponto de vista era realizado por Aristóteles. Segundo ele, o C. em ato é idêntico ao objeto, se se tratar de C. sensível; é a própria forma inteligível (ou substância) do objeto, se se tratar de C. intelegível (De an., II, 5, 417 a). En-
tende-se que a faculdade sensível e o intelecto potencial são simples possibilidades de conhecer, mas quando essas possibilidades se realizam, a primeira pela ação das coisas externas, a segunda pela ação do intelecto ativo, identificam-se com os respectivos objetos; p. ex., ouvir um som (sensação em ato) identifica-se com o próprio som, assim como entender uma substância identifica-se com a própria substância. Portanto, Aristóteles pode afirmar, em geral, que "a ciência em ato é idêntica ao seu objeto" (Dean., III, 7, 431 a 1).
Essa doutrina aristotélica pode ser considerada a forma típica da interpretação do C. como identidade com o objeto. Com exceção dos estóicos, tal interpretação domina o curso ulterior da filosofia grega. Para Epicuro, o fluxo dos simulacros (eidold) que se destacam das coisas e se imprimem na alma serve precisamente para garantir a semelhança das imagens com as coisas (Ep. aHerod., 51). E Plotino utiliza o mesmo conceito para esclarecer a natureza do conhecimento. Tem-se C. quando a parte da alma com que se conhece unifica-se com o objeto conhecido e forma um todo com ele. Se a alma e esse objeto permanecem dois, o objeto permanece exterior à própria alma e o conhecimento dele permanece inoperante. Só a unidade dos dois termos constitui o conhecimento verdadeiro (Enn., III, 8, 6). Na filosofia cristã, permanece a mesma interpretação, que, aliás, serve de fundamento para as mais características especulações teológicas e antropológicas. Segundo S. Agostinho, o homem pode conhecer Deus porquanto ele mesmo é a imagem de Deus. Memória, inteligência e vontade, em sua unidade e distinção recípocra, reproduzem no homem a trindade divina de Ser, Verdade e Amor (De Trin., X, 18). Essa noção, com algumas variações secundárias, dominou toda a teologia medieval e também foi o fundamento da antropologia. Mas dela derivava uma conseqüência importante pelo C. que o homem tem das coisas inferiores a Deus. O reconhecimento da origem divina dos poderes humanos (enquanto imagens dos poderes divinos) torna os poderes humanos relativamente independentes dos outros objetos cognoscíveis e acentua a importância do sujeito cognoscente. Para Aristóteles, a faculdade sensível e o intelecto potencial nada mais são que seus próprios objetos "em potência": não têm nenhuma independência em face desse objetos. Mas S. Agostinho afirma, ao contrário, que "todo C. (notitid) deriva, ao mesmo tempo, do cognoscente e do conhecido" (Jbid., XIX, 12), pondo no mesmo plano o objeto conhecido e o sujeito eognoscente como condição do conhecimento, S. Tomás, embora sancionando explicitamente o princípio de que todo C. ocorre per assimilationem {Contra Gent., II, 77) ou perunionem{In Sent., I, 3, D da coisa conhecida e do objeto cognoscente, afirma que "o objeto conhecido está no cognoscente segundo a natureza do próprio cognoscente" {De ver., q. 2, a. 1; S. Th., I, q. 83, a. 1); e assim no conhecer o peso do sujeito vem contrabalançar o peso do objeto. Esse ponto de vista leva a atenuar a tese aristotélica, segundo a qual o C. em ato é o próprio objeto. S. Tomás, comentando a afirmação aristotélica de que "a alma são todas as coisas" {De an., III, 8.431 b 20) a atenua no sentido de que a alma não são as coisas, mas as espécies das coisas. Mas a espécie outra coisa não é senão a forma das coisas. C, portanto, é abstração: a forma abstraída da matéria individual, o universal abstraído do particular. Assim, para S. Tomás, a espécie estabelece o limite da identidade entre o cognoscente e o conhecido; mas o conhecer permanece como identidade. Por sua vez, S. Boaventura, apesar de continuar fiel ao princípio agostiniano do lumen directivum que o homem haure diretamente de Deus e do qual derivam certeza e verdade, admite que o material do C. é constituído por espécies que são imagens, similitudes ou "quase-pinturas" das próprias coisas {In Sent., I, p. 17, a. 1, q. 4). Se, em seu último período, a Escolástica assinala o predomínio de uma interpretação diferente do conhecer (v. mais adiante), o Renascimento conserva, em geral, a interpretação do C. como identidade ou semelhança. Nicolau de Cusa diz explicitamente que o intelecto não entende se não se assimila ao que deve entender {De mente, 3-; De ludo globi, 1; De venatione sapientiae, 29) e Ficino diz que o C. é a união espiritual com alguma forma espiritual {Theol.plat., III, 2). Os naturalistas não se exprimem de modo diferente: Bruno retoma o princípio pré-socrático de que todo semelhante se conhece pelo semelhante e Campanella afirma: "nós conhecemos o que é porque nos tornamos semelhantes a ele" {Mel, I, 4, 1). O pitagorismo dos fundadores da nova ciência, Leonardo, Copérnico, Kepler, Ga-lilei, tem pressuposto análogo: o procedimento matemático da ciência justifica-se porque a própria natureza tem estrutura matemática: no sentido de que, como diz Galilei, os caracteres em
que está escrito o livro da natureza são triângulos, círculos, etc. {Opere, VI, pág, 232).
Na filosofia moderna, a doutrina de que conhecer é uma operação de identificação assume três formas principais, segundo se considere que essa operação é realizada mediante: d) a criação que o sujeito faz do objeto; b) a consciência; c) a linguagem.
d) O idealismo romântico e as suas ramificações contemporâneas afirmaram a tese de que conhecer significa pôr, isto é, produzir ou criar, o objeto: tese que permite reconhecer no próprio objeto a manifestação ou a atividade do sujeito. Essa tese foi afirmada em primeiro lugar por Fichte. "A representação em geral", disse ele, "é irreputavelmente um efeito do Não-eu. Mas no Eu não pode haver absolutamente nada que seja um efeito; porque o Eu é aquilo que ele se põe e nada há nele que não seja posto por ele mesmo. Portanto, o próprio Não-eu deve ser efeito do Eu, aliás do Eu absoluto, e assim não temos uma ação sobre o Eu vinda de fora, mas uma ação do eu sobre si mesmo" {Wissenschaftslehre, 1794, III, § 5, 1). Desse ponto de vista, o Não-eu, isto é, o objeto, não é senão o próprio Eu, isto é, o sujeito: a identidade com o objeto é, assim, garantida pela própria definição de conhecimento. Esta, obviamente, é uma definição arbitrária que não tem efeitos sobre o êxito ou o malogro dos atos efetivos de C. e não servem, por isso, nem para dirigir nem para esclarecer esses atos. Contudo, o princípio afirmado por Fichte foi um dos que constituíram os pilares do movimento romântico (v. Romantismo); e aí tem origem um dos lugares-comuns mais perniciosos e enfadonhos, o do "poder criativo do espírito". Schelling só fazia esclarecer seu significado quando afirmava: "No próprio fato do saber — quando eu sei — o objetivo e o subjetivo estão tão unidos que não se pode dizer a qual dos dois cabe a prioridade. Não há aí um primeiro e um segundo: ambos são contemporâneos e constituem um todo único {System des transzendentalen Idealismus, Intr., §1). O conceito do conhecer como processo de unificação domina toda a filosofia de Hegel. A protagonista dessa filosofia, a Idéia, é a consciência que se realiza, gradual e necessariamente, como unidade com o objeto. Diz Hegel: "A Idéia é, em primeiro lugar, um dos extremos de um silogismo, porquanto é o conceito que tem como fim, acima de tudo, a si mesmo como realidade subjetiva. O outro extremo é o limite do subjetivo, o mundo objetivo. Os dois extremos são idênticos no ser Idéia. Sua unidade é, em primeiro lugar, a do conceito, que num deles é somente por si e, no outro, somente em si; em segundo lugar, a realidade é abstrata num deles, ao passo que no outro está em sua exterioridade completa. Essa unidade coloca-se por meio do conhecer" {Wissenchft der Logik, III, cap. II; trad. it., p. 282). Assim, conhecer é o processo que unifica o mundo subjetivo com o mundo objetivo, ou melhor, que leva à consciência a unidade necessária de ambos. Todas as formas do idealismo contemporâneo atêm-se a essa doutrina. Croce a introduz chamando o conceito de "concreto": e por esse caráter dever-se-ia excluir que ele seja "universal e vazio", "universal e inexistente" e admitir que ele compreende em si "o ato lógico universal" e o "pensamento da realidade", que é a própria realidade {Lógica, 4a ed., 1920, p. 29). Gentile afirmava: "Conhecer é identificar, superar a alteridade enquanto tal" {Teoria generale dello spirito, 2, $ 4). Por sua vez Bradley, mais criticamente, considerava essa identificação como um ideal-limite irrealizável em nós, mas realizado na Consciência absoluta, na qual C. e ser, verdade e realidade, coincidem {Appearance and Rea-Hty, p. 181).
b) O espiritualismo moderno, em todas as suas manifestações, considera o conhecer como uma relação interna da consciência consigo mesma. Essa interpretação garante a identidade do conhecer com o objeto, já que desse ponto de vista o objeto não é senão a própria consciência ou, pelo menos, um produto seu ou / uma manifestação sua. Schopenhauer assim exprimia essa doutrina: "Ninguém nunca pode sair de si para identificar-se imediatamente com coisas diferentes de si: tudo aquilo de que alguém tem C. seguro, portanto imediato, encontra-se dentro da sua consciência" {Die Welt, D, cap. I). Consciência, sentido íntimo, intros-pecção, intuição são os termos que, a partir do Romantismo, a filosofia moderna emprega para indicar o C. caracterizado pela identidade com seu objeto, por isso privilegiado na sua certeza. A consideração básica é que, se o sujeito não pode conhecer o que é diferente dele, o único í C. verdadeiro e originário é o que ele tem de si mesmo. Com base nisso, Maine de Biran via no "sentido íntimo" o único C. possível e interpretava os seus testemunhos como verdades metafísicas {Essais sur les fondements de Ia psychologie, 1812). Outras vezes, a consciência,
também chamada de intuição, é interpretada como a revelação que Deus faz ao homem de um atributo fundamental seu (p. ex., do ser, como afirma Rosmini, Nuovo saggio, § 473) ou do seu próprio processo criativo, como faz Gioberti {Intr. alio studio deliafil., II, p. 183). De modo análogo, a intuição de que fala Bergson "como visão direta do espírito pelo espírito" {La pensée et le mouvant, p. 37) é um procedimento privilegiado de C, no qual o ter: mo objetivo é idêntico a subjetivo. E quando Husserl quis esclarecer o modo de ser privilegiado da consciência chamou de "percepção imanente" a percepção que a consciência tem das próprias experiências vividas: porque o objeto dela pertence à mesma corrente de consciência a que pertence a percepção (Ideen, I, § 38). Com base nisso, Husserl considera a percepção imanente, isto é, a consciência como absoluta e necessária: nela "não há lugar para discordância, aparência, possibilidade de ser outra coisa. Ela é uma esfera de posição absoluta" {Ibid., § 46). A exemplificação dada até aqui pode bastar para esse ponto de vista, que tem grande difusão na filosofia contemporânea e, apesar da variedade das suas expressões, é muito uniforme.
c) Paradoxalmente o positivismo lógico transportou para a linguagem, em que vê a operação cognitiva propriamente dita, a doutrina do caráter identificador dessa operação. Wittgenstein afirma que "a proposição pode ser verdadeira ou falsa enquanto é uma imagem {Bild) da realidade" {Tractatus, 4.06). E prova que a proposição é uma imagem da realidade do seguinte modo: "Só conhecerei a situação por ela representada se compreender a proposição. E compreendo a proposição sem que o seu sentido me seja explicado" {Ibid., 4.021).
À primeira vista, acrescenta ele, "não parece que a proposição, p. ex. do modo como está impressa no papel, seja uma imagem da realidade de que trata. Mas, à primeira vista, nem a notação musical parece ser imagem da música, assim como nossa escrita fonética (com letras) não parece ser a imagem de nossa língua falada. No entanto, esses símbolos demonstram ser, até no sentido comum do termo, imagens do que representam" {Ibid., 4.011). A insistência na noção da imagem indica claramente que Wittgenstein compartilha a velha interpretação do conhecer como operação de identificação. E de fato diz: "Deve haver algo de idêntico na imagem e no objeto representado para que
aquela possa ser a imagem deste" (Ibid., 2.161). Mas esse algo é "a forma de figuração" (Jbid., 2.17). E a forma de figuração é a "possibilidade de que as coisas estejam uma em relação à outra assim como os elementos da imagem estão entre si" (Jbid., 2.151). O que parece remeter à interpretação B da relação identificadora. B) A segunda fase da doutrina do C. como identificação nasce com a filosofia moderna, mais precisamente com Descartes. O princípio cartesiano de que a idéia é o único objeto imediato do C, e que, por isso, a existência da idéia no pensamento nada diz sobre a existência do objeto representado, obviamente punha em crise a doutrina do conhecer como identificação com o objeto: nesse caso, o objeto é claramente inalcançável. Descartes continuara a conceber a idéia como "quadro" ou "imagem" da coisa (Méd., III, mas nele já aparece a tendência (cf. Regulae, V) de ver no C, mais do que a assimilação ou a identidade da idéia com o objeto conhecido, a assimilação e a identidade da ordem das idéias com a ordem dos objetos conhecidos. Malebranche, que admite que o homem vê diretamente em Deus as idéias das coisas e, por isso, considera muito problemática a realidade das coisas, admite, todavia, essa realidade como fundamento da ordem e da sucessão das idéias no homem; ordem e sucessão não teriam sentido, pensa ele, se não coincidissem com a ordem e a sucessão das coisas a que se referem as idéias (Entretien sur Ia métaphysique, I, 6-7). Spinoza, que admite três gêneros de C. (percepção sensível e imaginação; razão com suas noções comuns e universais; a ciência intuitiva), considera que só os dois últimos permitem distinguir o verdadeiro do falso, porque tiram a idéia do seu isolamento e a vinculam às outras idéias, situando-a na ordem necessária que é a própria Substância divina (Et., II, 44). Locke, que define o C. como "a percepção do acordo e da ligação, ou do desacordo e do contraste das idéias entre si" (Ensaio, IV, 1, 2), exige, para que ele seja real, que "as idéias correspondam aos seus arquétipos" (Ibid., IV, 4, 8) e por isso define a verdade como "a união ou a separação de signos, conforme as coisas significadas por elas concordem ou discordem entre si" (Ibid., IV, 5, 2). Locke considera que essa referência a objetos reais não é indispensável ao C. matemático e ao moral, mas que é indispensável ao "C. real", que tem por objeto substâncias (Ibid., IV, 4, 12). Para Leibniz, ao lado do C. apriori, funda-
do em princípios constitutivos de intelecto, há um C. representativo que consiste na semelhança entre as representações e a coisa (Nouv. ess., IV, 1, 1). Mas um e outro C. fazem da alma "um espelho vivo e perpétuo do universo", porque ambos se baseiam na ligação que todas as coisas criadas têm entre si, de tal modo que "cada substância simples tem relações que exprimem todas as outras relações" (Monad., 56). Em todas essas observações, embora não se negue o caráter de semelhança ou de imagem dos elementos cognitivos, o C. é entendido propriamente como identidade com a ordem objetiva. Seu objeto é propriamente essa ordem e o conhecer é a operação que tende a identificar ou a identificar-se com ele, e não com os elementos singulares entre os quais intercede. A propósito, a "revolução coperni-cana" de Kant não consiste em inovar radicalmente esse conceito de C, mas em admitir que a ordem objetiva das coisas tem como modelo as condições do C, e não vice-versa. As categorias são, na verdade, consideradas por Kant como "conceitos que prescrevem leis apriori aos fenômenos e, portanto, à natureza como conjunto de todos os fenômenos" (Crít. R. Pura, § 26). Os fenômenos, não sendo "coisas entre si mesmas", mas "representações de coisas", para tanto precisam, ser pensados e, assim, estar submetidos às condições do pensamento que são as categorias. Para Kant, a ordem objetiva da natureza, portanto, outra coisa não é senão a ordem dos procedimentos formais do conhecer, na medida em que essa ordem se incorporou em um conteúdo objetivo, que é o material sensível da intuição. Desse ponto de vista, conhecer nào é uma operação de assimilação ou de identificação, mas de síntese; e como tal deve ser considerada sob outro aspecto, do C. como transcendência. Pode-se considerar que essa fase da doutrina do C. co-' mo assimilação, segundo a qual o objeto da assimilação é a ordem, situa-se entre a primeira e a segunda interpretação principal do conhecer, ou seja, entre a interpretação do conhecer como assimilação e a interpretação do conhecer como transcendência.
2a Para a segunda interpretação fundamental, o C. é uma operação de transcendência. Segundo essa doutrina, conhecer significa virá presença do objeto, apontá-lo ou, com o termo preferido pela filosofia contemporânea, trans* cenderem sua direção. O C. é então a operação em virtude da qual o próprio objeto está presente: ou presente, por assim dizer, em pessoa, ou presente em um signo que o torne tastreável, descritível ou previsível. Essa interpretação não se funda em nenhum pressuposto de caráter assimilador ou identificador: para ela, os procedimentos do conhecer não visam converter-se no próprio objeto do conhecer, mas a tornar presente esse objeto como tal ou a estabelecer as condições que possibilitam sua presença, isto é, permitem prevê-la. A presença do objeto ou a predição dessa presença constitui a função efetiva do C., segundo essa interpretação.
É nos estóicos que essa interpretação aparece pela primeira vez. Eles chamavam de evidentes as coisas que "vêm por si mesmas ao nosso C." como p. ex. ser dia; e chamavam de "obscuras" as coisas que costumam escapar ao C. humano. Entre estas últimas, distinguiram as obscuras por natureza, que nunca se nos tomam evidentes, e as obscuras momentaneamente, mas evidentes por natureza (p. ex., a cidade de Atenas para quem mora nela). Estas duas últimas espécies de coisas são compreendidas por meio de signos ou sinais: indicativos para as coisas obscuras por natureza (como, p. ex., o suor é assumido como sinal dos poros invisíveis) e rememorativos para as coisas evidentes por natureza, mas momentaneamente obscuras (assim como a fumaça é um sinal de fogo) (Sexto Empírico, Adv. dogm., II, 141; Pirr. hyp., II, 97-102). São reconhecíveis, nessa empostação, duas teses fundamentais: Ia o C. evidente consiste na presença da coisa, pela qual a coisa "se manifesta por si" ou "se compreende por si", isto é, compreende-se como coisa, portanto como diferente daquele que a compreende; 2- o C. não evidente ocorre por meio de signos ou sinais que remetem à própria coisa sem que tenham qualquer identidade ou semelhança com ela.
Essa doutrina dos estóicos ficou esquecida durante muitos séculos, negligenciada, como possibilidade pela história da filosofia. Reaparece somente na Escolástica do séc. XIV, com os pensadores que criticam a doutrina da spe-cies como intermediária do conhecimento. A species, como se viu, é uma tese típica da doutrina da assimilação: na verdade é, ao mesmo tempo, ato do C. e o ato do objeto (como forma ou substância deste último). Mas Duns Scot dis-tinguiria um C. "que abstrai da existência atual da coisa", dando-lhe o nome de "abstrativo"', e um "C. da coisa enquanto existente e presente
em sua existência atual", dando-lhe o nome de intuitivo (Op. Ox., II, d. 3, q. 9, n. 6). Ora, o C. intuitivo (que, por um lado, é conhecimento sensível e, por outro, é conhecimento intelectual, que tem por objeto a substância ou natureza comum, p. ex., a natureza humana) não tem necessidade de espécies, porque nele está diretamente presente a coisa em pessoa. Só o C. abstrativo, isto é, o C. intelectual do universal, tem necessidade de espécies (Ibid., I, d. 3, q. 7, n. 2). É a essa doutrina que a Escolástica do séc. XVI faz referência. Durand de St.-Pourçains afirma que a espécie é inútil porque o próprio objeto está presente ao sentido, e, através do sentido, também ao intelecto (In Sent., II, d. 3, q. 6, n. 10); portanto, o C. universal é somente C. confuso, pois quem tem o C. universal — p. ex., da rosa — conhece confu-sarnente o que é intuído distintamente por quem vê a rosa que lhe está presente (Ibid., IV, d. 49, q. 2, 8). Para Pedro Auréolo, o objeto do C. é a própria coisa externa que, graças ao intelecto, assume um ser intencional ou objetivo que não é diferente da realidade individual da coisa (In Sent., I, d. 9, a. 1). Ockham, por sua vez, transforma a teoria scotista do C. intuitivo em teoria da experiência e afirma a presença imediata da coisa ao C. intuitivo. "Em nenhum C. intuitivo, sensível ou intelectivo", diz ele, "a coisa se constitui em ser intermediário entre a própria coisa e o ato de conhecer; mas a coisa mesma, imediatamente e sem intermediário entre ela e o ato, é vista e apreendida" (In Sent, I, d. 27. q. 3, I). O C. intuitivo perfeito, que tem por objeto uma realidade atual ou presente, é a experiência (Ibid., II, q. 15, H); o imperfeito, que concerne a um objeto passado, deriva sempre de uma experiência (Ibid., IV, q. 12, Q). Por sua vez, o C. abstrativo, que prescinde da realidade ou da irrealidade do objeto, deriva do intuitivo e é uma intentioou signum. Ockham reproduz assim a interpretação dos estóicos: quando a realidade não está presente ao C. "em pessoa", anuncia-se ou manifesta-se no signo ou sinal. A validade do signo conceituai, que, ao contrário do lingüístico, não é arbitrário ou convencional, mas natural, provém do fato de ser produzido naturalmente, isto é, casualmente, pelo próprio objeto, de tal modo que sua capacidade de representar o objeto nada mais é que essa conexão causai com ele (Quodl, IV, q. 3). Para ilustrar a função lógica do signo, ou sinal, Ockham utiliza o conceito da supositio, que fora elaborado pela lógica do séc. XIII (V. Signo, Suposição). No séc. XVII, os pontos básicos dessa doutrina foram reproduzidos por Hobbes, para quem a sensação, que é o fundamento de todo C, é o manifestar-se da coisa através do movimento que ela imprime ao órgão do sentido {Leviath., 1,1; De corp., 25 § 2). Berkeley substituía a causalidade da coisa externa, à qual esses filósofos atribuíam o C, pela causalidade de Deus: teoria segundo a qual as coisas conhecidas são sinais pelos quais Deus fala aos sentidos ou à inteligência do homem para instruí-lo sobre o que deve fazer {Principies of Knowledge, §§ 108-09) é uma transição teológica dessa doutrina do conhecimento. Entrementes, com o cartesianismo e especialmente com Locke, iam-se formando conceitos do C. como operação unificadora: unificadora de idéias, isto é, de estados interiores à consciência, mas cuja interligação corresponde ou deve corresponder à das coisas (v. Ia B). Eliminada por Berkeley a substância material e por Hume toda espécie de substância, a ligação entre as idéias vinha exaurir a função da atividade cognoscitiva. Assim, Hume considera que toda operação cognoscitiva é uma operação de conexão entre as idéias; operação de conexão é o raciocínio pelo qual se mostra a ligação que as idéias têm entre si, independentemente de sua existência real; operação de conexão entre as idéias é o C. da realidade de fato. No primeiro caso, a conexão é certa porque não depende de nenhuma condição de fato; no segundo caso baseia-se na relação de causalidade. Mas essa mesma relação não tem outro fundamento além da repetição de certa sucessão de acontecimentos e o hábito que essa repetição determina no homem (lnq. Cone. Underst., IV, 1).
Esse conceito do C. como operação de conexão ou de interligação, que nada tem a ver com a identificação ou a assimilação com o objeto, é chamado por Kant de operação de síntese. A síntese é, em geral, "o ato de reunir diferentes representações e compreender sua multiplicidade em um C." (Crít. R. Pura, § 10). Mas, para Kant, a síntese cognitiva não é somente uma operação de ligação entre representações: é também uma operação de ligação dessas representações com o objeto por meio da intuição. "Se um C. deve ter uma realidade objetiva", diz Kant, "isto é, referir-se a um objeto e nele ter significado e sentido, o objeto deve poder ser dado de um modo qualquer. Sem isso, os conceitos são vazios e, se com eles
se pensar, esse pensamento nada conhecerá, mas só estará brincando com as representações. Dar um objeto — que não deva ser opinado indiretamente, mas representado imediatamente na intuição — nada mais é que ligar sua representação com a experiência (seja esta real ou possível)" {Ibid., Analítica dos princípios, cap. II. seç. II). Pensar um objeto e conhecer um objeto não são, pois, a mesma coisa. "O C. compreende dois pontos: em primeiro lugar, um conceito pelo qual um objeto em geral é pensado (a categoria) e, em segundo lugar, a intuição com que ele é dado" {Ibid., § 22). A intuição tem o privilégio de referir-se imediatamente ao objeto e de, por meio dela, o objeto ser dado {Jbid., § 1). Por isso, não há dúvida de que a operação de conhecer tende a tornar o objeto presente em sua realidade: um objeto, entenda-se, que é fenômeno, já que a "coisa em si", por definição, é estranha a qualquer relação cognitiva.
O conceito de C. — isento da limitação relativista sugerida a Kant e a toda filosofia iluminista pela colocação de Descartes e Locke —, mas como operação de referir-se ou relacionar-se com o objeto e, portanto, também como processo pelo qual o objeto se oferece ou se apresenta em pessoa, foi adotado pela fenomenologia contemporânea e pelas suas diversas correntes. "A cada ciência", diz Husserl, "corresponde um campo objetivo como domínio das suas indagações; a todos os seus C, isto é, aos seus enunciados corretos, correspondem determinadas intuições que constituem o fundamento de sua legitimidade, porquanto nelas os objetos do campo se dão em pessoa e, ao menos parcialmente, como originários" {Idem, I, § 1). Assim, a experiência, que abrange todo o C. natural, é uma operação intuitiva através da qual um objeto específico, a coisa, é dada na sua realidade originária. Nesse sentido, a experiência é um atofundante, não substituível por um simples imaginar. Por outra lado, o C. geométrico, que não investiga realidades mas possibilidades ideais, tem como ato fundante a visão da essência: essa visão, exatamente como a percepção empírica, torna atual e apresenta um objeto em pessoa: este, porém, não é a coisa da experiência, mas a essência' -{Ibid., § 8). Considerando o C. de um ponto de vista mais geral, pode-se dizer que "toda espécie de ser tem por essência seus modos de dar-se e, portanto, seu método de C." {Ibid., § 79); e a pesquisa fenomenológica é, no projeto de Husserl, a análise desse modos de ser como "modos de dar-se". Analogamente, para N. Hartmann o conhecimento é um processo de transcendência cujo termo é o ser "em si" (Metaphysik der Erkenntnis, 1921, 4- ed., 1949, pp. 43 e ss.). Segundo essa análise, deixou de ter sentido contrapor atividade e passividade no conhecimento (contraposição que, nascida de Kant, fora assumida como motivo polêmico pelo Romantismo a partir Fichte). Não cabe mais distinguir no conhecimento o aspecto ativo, que Kant chamava de "espontaneidade intelectual", do aspecto passivo, que para Kant era a sensibilidade. Não se trata nem mesmo de reduzir todo o C. à atividade do eu, como fizera Fichte e, com ele, toda a filosofia romântica, que considerou essa atividade "infinita", isto é, sem limites (e por isso criadora), e como tal a exaltou. Hoje, parece fictício até mesmo a perspectiva histórica que prevaleceu no Romantismo e que opunha a concepção "clássica" (antiga e medieval), para a qual a operação de conhecer seria dominada pelo objeto diante do qual o sujeito é passivo, concepção moderna ou romântica, para a qual o C. seria atividade do sujeito e manifestação de seu poder criador. Trata-se, realmente, de uma perspectiva típica do Romantismo e de uma oposição teórica, que serviu a fins polêmicos. Nem a filosofia antiga nem as modernas concepções objetivistas pretendem estabelecer ou pressupõem a "passividade" do sujeito cognoscente. Ao sujeito cognoscente pertence com certeza a iniciativa do conhecer, aliás, é justamente essa iniciativa que define a sua subjetividade. Mas isso não implica nem atividade nem passividade no sentido estabelecido por Fichte. A iniciativa do sujeito visa tornar o objeto presente ou manifesto, para tornar evidente a própria realidade, para manifestar os fatos. Aquilo que se chama abreviadamente conhecer é um conjunto de operações, às vezes muito diferentes entre si, que, em campos diversos, visam a fazer emergir, em suas características próprias, certos objetos específicos. Desse ponto de vista, o "problema do C", tal como se configurou na segunda metade do séc. XIX, como colocação romântica ou polêmica contra ela, como problema de atividade ou passividade do espírito ou de sua "categoria eterna", que seria a atividade teorética, é um problema que se desfez sob a ação da fenomenologia, por um lado, e da filosofia da ciência e do pragmatismo, por outro. No âmbito da fenomenologia, Heidegger fala de uma
anulação do problema do conhecimento. O conhecer não pode ser entendido como aquilo pelo que o ser-aí (isto é, o homem) "vai de dentro para fora de sua esfera interior, esfera na qual estaria, anteriormente, encapsulado: ao contrário, o ser-aí, em conformidade com seu modo de ser fundamental, já está sempre fora, junto ao ente que lhe vem ao encontro no mundo já descoberto" (Sem undZeit, § 13). Segundo Heidegger, conhecer é um modo de ser do ser-no-mundo, isto é, do transcender do sujeito para o mundo. Ele nunca é apenas um ver ou um contemplar. Diz Heidegger: "O ser no mundo, enquanto ocupar-se, é tomado e obnu-bilado pelo mundo com que se ocupa" (Ibid., § 13). O conhecer é, em primeiro lugar, a abstenção do ocupar-se, isto é, das atividades comuns da via cotidiana, como manusear, comerciar, etc. Essa abstenção possibilita o simples "observar, que é, de quando em quando, o deter-se junto a um ente, cujo ser é caracterizado pelo fato de estar presente, de estar aqui". Nessa abstenção de todo comércio e utilização, realiza-se a percepção da simples presença. O perceber concretiza-se nas formas de interpelar e discutir algo como algo. Com base nessa interpretação, entendida em sentido amplo, a percepção se torna determinação. O percebido ou o determinado pode ser expresso em proposições, bem como manter-se e preservar-se nessa qualidade de proposto. A retenção percep-tiva de uma proposição sobre... já é, em si mesma, uma maneira de ser no mundo e não pode ser interpretada como um processo em virtude do qual um sujeito receberia imagens de algo, imagens que seriam, em conseqüência, experimentadas como "internas", de tal sorte que suscitariam o problema de sua concordância com a realidade "externa" {Ibid., § 13). O "problema do C." e o "problema da realidade" (v. Realidade), do modo formulado pela filosofia do séc. XIX, são, pois, eliminados por Heidegger. Todas as manifestações ou graus do conhecer (observar, perceber, determinar, interpretar, discutir, negar e afirmar) pressupõem a relação do homem com o mundo e só são possíveis com base nessa relação.
Essa convicção hoje é compartilhada por filósofos de procedência diferente, ainda que muitas vezes sob terminologias diversas. O fundamento que a sugere é sempre o mesmo: o abandono do pressuposto de que os "estados internos" (idéias, representações, etc.) são os objetos primários de conhecimento, e que só a partir deles podem (se é que podem) ser inferidos objetos de outra natureza. A renúncia a esse pressuposto está explícita, p. ex., no pragmatismo de Dewey, para quem o C. é simplesmente o resultado de uma operação de investigação ou, mais precisamente, é a asserção válida em que tal operação desemboca. Desse ponto de vista, o objeto do C. não é uma entidade externa a ser alcançada ou inferida, mas é "o grupo de distinções ou características conexas que emerge como constituinte definido de uma situação resolvida e é confirmado na continuação da investigação" {Logic, cap. XXV, II; trad. it., p. 666). Visto que, freqüentemente, são usados em certa investigação objetos constituídos em investigações precedentes, estes últimos às vezes são entendidos como objetos existentes ou reais, independentemente da própria investigação. Na realidade, são independentes da investigação em que ora entram, mas são objetos só em virtude de uma outra investigação de que resultam. No entanto, segundo Dewey, esse simples equívoco é a base da concepção "representativa" do conhecimento. "O ato de referir-se a um objeto, que é um objeto conhecido só em virtude de operações totalmente independentes do próprio ato de referência, é considerado, para fins de uma teoria do C, como constituinte por si mesmo de um caso de C. representativo" {Logic, p. 667).
Essas idéias influenciaram e continuaram influenciando poderosamente a filosofia contemporânea e são a base da dissolução do problema do C, que é uma de suas características. A dissolução desse problema favoreceu a lógica por um lado, e a metodologia das ciências, por outro. Esta última, especialmente, é a herdeira contemporânea de tudo o que ficou de válido em problemas que eram habitualmente tratados pela teoria do conhecimento. A característica fundamental do objeto da metodologia das ciências hoje é o caráter operacional e an-tecipatório dos seus procedimentos. Aqui aludiremos às primeiras identificações históricas desses caracteres, remetendo seu estudo mais detalhado ao verbete Metodologia. São reconhecidos pela ciência só na medida em que o objetivo fundamental desta não é a descrição, mas a previsão. Esse objetivo fora atribuído à ciência por F. Bacon; na filosofia moderna, é reafirmado por Auguste Comte. Mas só mais tarde os próprios cientistas o reconheceram e o assumiram explicitamente. Isso começou a ocorrer quando Mach retomou a tese de que o
objeto do C. é um grupo de sensações. "Uma cor", diz Mach, "é um objeto físico enquanto consideramos, p. ex., sua dependência das fontes de luz (outras cores, calor, espaço, etc); mas se a consideramos em sua dependência da retina, é um objeto psicológico, uma sensação. Nos dois campos, a diferença não está na substância, mas na direção da investigação" {Ana-lyse der Empfindungen, 1900; 9a ed., 1922, p. 14). Sob esse prisma, não são os corpos que geram as sensações, mas são os complexos de sensações que formam os corpos; estes não são mais do que símbolos para indicar tais complexos. Com isso, pode parecer que Mach se inclina para a teoria representativa do conhecimento. Mas, na realidade em sua teoria do conceito, é claramente reconhecido o caráter operacional do C. O conceito científico, segundo Mach, é um signo que resume as reações possíveis do organismo humano a um complexo de fatos. Uma lei natural, p. ex., é uma restrição das possibilidades de expectação, isto é, uma determinação da previsão {Erkenntniss undlrrtum, 1905, cap. XXIII). Os mesmos conceitos haviam sido apresentados por Hertz em Princípios da mecânica (1894), embora sem o abandono total da concepção pictórica do conhecimento. "O problema mais direto e, em certo sentido, o mais importante que o nosso C. da natureza deve capacitar-nos a resolver", dizia Hertz, "é a antecipação dos acontecimentos futuros, de tal modo que possamos dispor as nossas atividades presentes de acordo com essa antecipação. Como base para a solução desse problema, utilizamos o C. dos acontecimentos já ocorridos, que foi obtido pela observação causai e pelo experimento preordenado. Ao fazermos inferências a partir do passado para o futuro adotamos constantemente o seguinte procedimento: formamos imagens ou símbolos dos objetos externos e a forma que damos a tais símbolos é tal que as conseqüências necessárias da imagem pensada são sempre as imagens das conseqüências na natureza das coisas representadas" (Prinzipien derMe-chanik, Intr.). O desenvolvimento posterior da ciência eliminou os resíduos de concepção representativa que ainda permaneciam nas doutrinas de Mach e de Hertz. Em 1930, um dos fundadores da mecânica quântica, Dirac, já po- ' dia afirmar: "O único objeto da física teórica é calcular resultados que possam ser confrontados com experimentos e é absolutamente su-< pérfluo dar uma descrição satisfatória de todo o desenvolvimento do fenômeno" (ThePrincipies of Quantum Mechanics, 1930, p. 7). Nesse ponto, a teoria do C. resolveu-se completamente na metodologia das ciências. Isso significa que, enquanto o problema do conhecimento como problema de um objeto "externo" a ser alcançado a partir de algum dado "interno" foi desaparecendo, propôs-se em seu lugar o problema da validade dos procedimentos efetivos, voltados para a verificação e o controle dos objetos nos diferentes campos de investigação.
 

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