Kl
Jay em seu discurso pela premiação de melhor clipe do ano, “Diário de um
detento”, dedica esse prêmio ao povo que veio da África, enriqueceu a Europa e
a América do Norte. Ele continua: “sobrou pra nós a favela, a cadeia, o trafico
de drogas [...] esse prêmio é para meu povo que vê no rap, nos Racionais, a
esperança de orgulho, de justiça e de poder”.
Há outro vídeo impressionante dos Racionais: Red
Bull Entrevista RACIONAIS' Mcs 05 06 2017. Depois de 1h de entrevista eles
discutem algumas coisas que eu queria chamar a atenção. Eles falam de como o
disco Sobrevivendo no Inferno gerou muitas coisas ruins. Esse disco canta a
sobrevivência na periferia de São Paulo. Assim eles vivenciam nas músicas histórias
de drogas, polícias, religião, cadeia, morte (inclusive o massacre do
Carandiru), busca pela paz.Iremos nos deter ao disco Sobrevivendo no Inferno, quarto disco da banda, que este ano será tema do vestibular da Unicamp, entrando como obra literária.
O disco começa com uma música de Jorge Bem Jor, Jorge da Capadócia, um santo popular que também é cultuado dentro das religiões de matriz africana. Depois de pedir a proteção, típico das religiões afro-brasileiras, como a umbanda, os racionais atualizam o gênese: separando deus dos homens. O primeiro criou o mar, as árvores, as crianças, o amor, o segundo criou a favela, o crack, a trairagem, entre outros. Atualizando também o modo de ser profeta, Mano Brown entra em cena com a bíblia, a pistola automática e o sentimento de revolta.
Antes da música que de fato vai abrir o disco com a primeira música dos racionais, primo preto vai apresentar as estatísticas acerca da participação da população negra na sociedade, em especial no que diz respeito a violência e a exclusão social. Mano Brown, falando em primeira pessoa, criando um profeta do fim do século XX, fala sobre sua missão: incorporar personagens que fazem parte da vida de São Paulo, personagens que foram criados pelo sistema. Sistema esse que precisam desses personagens para existir. Entre eles estão: juiz e réu, malandro e otário, padre e sanguinário, antigo, moderno e mortal. São esses personagens, incorporados Edi Rock, Ice Blue e Mano Brown e musicados por KL Jay que contaram um parte da história da vida da cidade São Paulo e, em maior ou menor grau, a vida de outras cidades no Brasil.
A segunda parte começa com Ice Blue chamando os parceiros para uma tiração com jogos, então alguém aconselha o Brown a não colar com esses caras uma vez que eles estão envolvidos com drogas. Brown lembra que ninguém é mais que ninguém e que apesar disso eles são nossos irmãos também. Em seguida há um trecho muito interessante onde eles relatam a história de um negro que vivia bem e até era modelo para os outros, porém com a aproximação com ‘os branquinhos do shopping’ sua vida mudou. Inicialmente as baladas, drinques, mulheres, depois de nove anos ficou inofensivo: viciado, doente e fudido. A razão, mais uma vez atualizando a bíblia em tempos de comunicação em massa (também chamada de indústria cultural), é o demônio da comunicação de massa que contaminando seu caráter com suas visões de mundo, rouba a sua alma. Contra isso, é que os racionais se levantam, não só para avisar, mas também para não julgar e condenar os irmãos….
A terceira parte começa com Edi Rock apresentando os ‘personagens’ que como eles tentam sobreviver no inferno que é são paulo. Estas figuras, como já dizia Cristo, são enganadas pelo dinheiro, pela ganância de querer ser o que não se é. Ai Brown lembra o que ele é, um latino-americano apoiado por mais de cinquenta mil manos que ainda que se protegendo contra o sistema, reconhece-se como efeito colateral desse próprio sistema.
Como é dito no site genius.com: “O jeito que o sistema funciona (de maneira errada e desigual para o povo) provocou a revolta do povo como um efeito colateral, a revolta através da música que chega nos ouvidos de todos, até do filho dos ricos. o feitiço voltando contra o feiticeiro”.
A quarta música, Tô ouvindo alguém me chamar, começa com um chamado, um tal Guina mandou um tiro para o eu lírico da música, narrador que é um dos personagens, interpretado pelo mano brown. A música é levada com mais tranquilidade que a anterior. O narrador descreve o Guina e logo em seguida como ele, o narrador, acompanha o Guina no seu primeiro assalto. Algo interessante aqui é que para o novato não é só o dinheiro que conta, mas [a ilusão] o sentimento de subverter o sistema. A segunda parte o narrador fala de um ladrão que, apesar da boa fama, num mundo de escassez e sem nenhum código de ética, acaba sendo vítima de outros ladrões. Esse trecho sussurrado, alterando o ritmo da música, oferece ao ouvinte uma imagem do acontecimento: a morte do oponente do narrador. A segunda parte continua com o narrador falando acerca dos sentimentos do Guina diante da sua condição social, da sua admiração pelo parceiro que, pelas suas qualidades poderia ocupar um cargo de destaque. Em seguida fala de si, do que para ele era uma boa vida, da impossibilidade de sair daquela vida e de um sonho que o perturbava. Na terceira parte o narrador fala do seu irmão, dos sonhos, do sobrinho e de uma vida tranquila. Porém, do mesmo modo que ele interrompeu a carreira de um ladrão, sua carreira também foi interrompida, a desculpa, ele supostamente teria caguetado a Guina. Esse foi o destino do nosso narrador, ser morto com o revólver que deu para o amigo.
A quinta música, Rapaz comum, em tom eletrizante, é contada por alguém que está agonizando e refletindo sobre a vida. Esse história poderia ser continuação da música anterior. Há falas como se fosse um encosto, ou uma alma penada que está perseguindo alguém. Na segunda parte fala do mito do cinema: “Sinto na pele, me vejo entrando em cena Tomando tiro igual filme de cinema”. Terceira parte: “Não quero admitir que sou mais um”. “A lei da selva é uma merda e você é o herdeiro!”
A sexta música, Diário de um detendo, que contou com clipe premiado pela MTV, como a própria letra diz é um diário de alguém que sobreviveu ao massacre do Carandiru. O diário conta o dia anterior e o dia posterior ao massacre. O detento fala do policial, do seu armamento, do seu papel no Estado e do conflito com ele. O discurso fica disperso, fala-se de deus, juiz, cuidado com o irmão, pena, tempo da cadeia, estuprador. Descrição do detento:
“Cada detento uma mãe, uma crença
Cada crime uma sentença
Cada sentença um motivo, uma história
De lágrima, sangue, vidas e glórias
Abandono, miséria, ódio, sofrimento
Desprezo, desilusão, ação do tempo
Misture bem essa química
Pronto: eis um novo detento”
Inicio da segunda parte:
“Ratatatá, mais um metrô vai passar
Com gente de bem, apressada, católica
Lendo jornal, satisfeita, hipócrita
Com raiva por dentro, a caminho do Centro
Olhando pra cá, curiosos, é lógico
Não, não é não, não é o zoológico
Minha vida não tem tanto valor
Quanto seu celular, seu computador”
Descrição de lúcifer:
“Já ouviu falar de Lúcifer?
Que veio do Inferno com moral um dia
No Carandiru, não, ele é só mais um
Comendo rango azedo com pneumonia”
Fala de onde vem os presos e sobre a visita. Fala da fuga: “A maioria se deixou envolver
Por uns cinco ou seis que não têm nada a perder”.
“Fleury foi almoçar, que se foda a minha mãe!
Cachorros assassinos, gás lacrimogêneo...
Quem mata mais ladrão ganha medalha de prêmio!
O ser humano é descartável no Brasil
Como modess usado ou bombril”
No min. 6:55 no clip eles mostram os mortos e depois cenas de segunda guerra, suponho que seja Auschwitz.
A sétima música, Periferia é periferia (em qualquer lugar), fala sobre a periferia de São Paulo. Crianças na escola, os manos na farinha. A mãe que cuida sozinha dos filhos, pois o marido trabalha sem parar, por causa de um patrão que o escraviza:
“Se a escravidão acabar pra você
Vai viver de quem? Vai viver de quê?
O sistema manipula sem ninguém saber
A lavagem cerebral te fez esquecer que andar com as próprias pernas não é difícil
Mais fácil se entregar, se omitir
Nas ruas áridas da selva
Eu já vi lágrimas demais, o bastante pra um filme de guerra”
Na segunda parte ele fala dos relatos dos moradores. Depois de contar a história de um nordestino que foi assaltado e por isso comprou uma arma, e o assaltante tentou roubar suas roupas no varal, ele matou o menino e fez deus chorar: “É foda, essa noite chove muito porque Deus chora”
(Muita pobreza, estoura a violência)
(Nossa raça está morrendo mais cedo)
(Não me diga que está tudo bem)
Eu não vou ficar do lado de ninguém por quê?
Quem vende droga pra quem?
…
Fico triste por saber e ver
Que quem morre no dia a dia é igual a eu e a você
No final, com o refrão: periferia é periferia o DJ vai colocando vários trechos de outras músicas que falam sobre a periferia.
Na oitava música, Qual mentira vou acreditar?, o narrador, o próprio cantor Edi Rock, fala sobre o role de sexta feira e os enquadros da polícia. Ai alguém que alguém falou que racismo não existe, a resposta: é o título da música. Na segunda parte, machistamente, eles, Edi Rock e Ice Blue, falam da mulherada. Na terceira Edi e Ice conversam sobre um ‘pastor’ sem vergonha.
Mágico de Oz
Começa falando de um menino de rua. Fala do uso de pedra e, talvez traduzindo o desejo do menino: transformar aqui num mundo mágico de Oz. No minuto 4:20 do clip, os racionais colocam os personagens da história. Acho que umas das questões é fazer um pedido para que o mágico (no caso da música, deus) atenda.
https://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1gico_de_Oz
Na segunda parte fala do menino no início da vida adulta, como traficante.
Crítica social (filosófica): “Dizem que quem quer segue o caminho certo
Ele se espelha em quem tá mais perto”.
Crítica ao mundo das drogas semelhante a critica do Bezerra da Silva: “Ah, das duas uma eu não quero desandar/Por aqueles mano que trouxeram essa porra pra cá/Matando os outros, em troca de dinheiro e fama/Grana suja como vem vai, não me engana”.
https://www.youtube.com/watch?v=fSs0X1RPLuU
Na terceira parte volta a falar (filosoficamente) do menino e da esmola que ele deu:
Pra mim não faz falta, uma moeda não neguei
E não quero saber, o quê que pega se eu errei
Independente a minha parte eu fiz
Tirei um sorriso ingênuo, fiquei um terço feliz
Se diz que moleque de rua rouba
O governo, a polícia no Brasil, quem não rouba?
Ele só não têm diploma pra roubar
Ele não se esconde atrás de uma farda suja
É tudo uma questão de reflexão, irmão
É uma questão de pensar
E depois uma crítica mais contundente a polícia:
Ah! A polícia sempre dá o mal exemplo
Lava minha rua de sangue
Leva o ódio pra dentro
Pra dentro de cada canto da cidade
Pra cima dos quatro extremos da simplicidade
A minha liberdade foi roubada
Minha dignidade violentada, que nada!
Por fim aconselha os manos a não fazer o mesmo: nem usar drogas, nem matar como a polícia. No final, falando os nomes dos bairros da sua quebrada, explica seus conselhos.
“Às vezes eu fico pensando se Deus existe mesmo, morô?”, aqui como Davi Kopenawa que duvida dos missionários que falam acerca da volta de Jesus.
Fórmula Mágica da Paz (algumas versões ao vivo Brown dá conselhos)
Essa múcica completa a anterior, porém para um adulto que conseguiu sobreviver aos problemas na música anterior. A primeira coisa que se coloca é sair dali e ir para um lugar melhor: não, diz o narrador Mano Brown. Como Sócrates na prisão relatada no diálogo Críton. “Cada lugar um lugar, cada lugar uma lei/Cada lei uma razão e eu sempre respeitei”
Então Brown fala dos problemas da periferia: casa, roupa, cadeia, carro, emprego, mulher, dinheiro.
De novo brown iguala todos: “Ninguém é mais que ninguém, absolutamente”.
Outra frase (filosoficamente) acerca da observação do mundo ao redor em busca da sobrevivência:
“Mas se liga, olhe ao seu redor e me diga:
O que melhorou? da função quem sobrou?
Sei lá, muito velório rolou de lá pra cá
Qual a próxima mãe que vai chorar?”
Frase que representa a religiosidade do Brown: “Agradeço a Deus e aos Orixás”
Na segunda parte Brown faz críticas aos manos e a polícia.
A terceira parte começa de maneira dramática, num feriado o narrador leva um amigo baleado no hospital. Nesse momento o narrador sente suas limitações (e talvez sua dependencia do sistema). Ele fala sobre o rapaz comum, título de uma música cantada pelo Edi Rock. Diante da morte do amigo, quase um mes depois, 2 de novembro, o narrador vai até o cimitério São Luís e de novo observa a cena:
E durante uma meia hora olhei um por um
E o que todas as senhoras tinham em comum:
A roupa humilde, a pele escura
O rosto abatido pela vida dura
Colocando flores sobre a sepultura
(Podia ser a minha mãe) Que loucura
Por fim ele dá o recado para a quebrada (para o PCC?):
Cada lugar uma lei, eu tô ligado
No extremo sul da Zona Sul tá tudo errado
Aqui vale muito pouco a sua vida
A nossa lei é falha, violenta e suicida
Se diz que, me diz que, não se revela:
Parágrafo primeiro na lei da favela
Legal, assustador é quando se descobre
Que tudo deu em nada e que só morre o pobre
A gente vive se matando irmão, por quê?
Não me olha assim, eu sou igual a você
Descanse o seu gatilho, descanse o seu gatilho
Entre no trem da malandragem (algumas versões aparece humildade), meu rap é o trilho
Salve
Com a batida da primeira música Mano Brown e Ice Blue dão um salve para os bairros de são paulo.
há muitos textos e vídeos sendo produzidos acerca deste disco, vou me deter em alguns:
vídeos: Djamila Ribeiro, Mário Medeiros, Emicia, Acauam Oliveira, Bianca Santana.
Sobre anjos e irmãos de Gabriel S. Feltran
http://www.scielo.br/pdf/rieb/n56/03.pdf
tese de doutorado: de Tiarajú Pablo D'Andrea, A formação dos sujeitos periféricos: cultura e política na periferia de São Paulo, 2013, USP, SP.
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-18062013-095304/pt-br.php
tese sobre os racionais: Tiarajú Pablo D'Andrea - A formação dos sujeitos periféricos: cultura e política na periferia de São Paulo
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-18062013-095304/pt-br.php
Há muitos outros grupos de Rap: Face da morte, Sistema Negro, Facção Central (com Eduardo Taddeo, ver seminário dele sobre literatura periférica), Djonga, Baco Exu do Blues, BK, Rincon Sapiência e Mariana Mello. Escolha um deles para pesquisar e comparar com os Racionais.
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