terça-feira, 19 de agosto de 2014

textos soltos

Partilhamos com estes historiadores das suas reticências. Não obstante, apoiamo-nos nos dignos exemplos de historiadores que não se furtam à urgente tarefa1; e mãos à obra: vamos tentar aqui conversar sobre o hoje, procurando “(...) reencontrar o jogo múltiplo da vida, todos os seus movimentos, todas as suas durações, todas as suas rupturas, todas as suas variações.”2Vivemos o tempo dos acirramentos da polarização latente, e – ainda mais nesses momentos – não tomar partido é tomar o partido da ordem. E essa ordem é nefasta, injusta e deve ser derrubada. Temos aqui, portanto, um objetivo declarado: tecer algum tipo de discurso que possa servir hoje para a constituição de uma sociedade mais igualitária e mais livre3.
1Hobsbawm, Wallerstein, etc
2Fernand Braudel – História e Ciências Sociais. A longa duração, [Annales E.S.C. Nº4 out-dez 1958]republicado em Escritos sobre a História [1ª ed. 1969: Flamarion Paris] trad. J. Guinburg e Tereza Cristina Silveira da Mota. São Paulo. Ed. Perspectiva, 2005. 1ª reimp. da 2ª ed. De 1992. p. 71

3Foucault e Deleuze, Os intelectuais e o Poder.

e

No início do diálogo Hipócrates, jovem ateniense, convence Sócrates, não tão jovem, a intervir junto a Protágoras para que o sofista ensinasse a ele a ser sábio. Antes, porém de ir à casa de Cálias, lugar onde Protágoras está ensinando, Sócrates o convida para passear e conversar. A primeira pergunta que Sócrates faz para Hipócrates usando o exemplo do médico que também chama-se Hipócrates é: “com qual intenção vais pagar salário a Hipócrates?” (311c) Hipócrates parece que não entende a pergunta, então Sócrates esclarece: “para que vires a ser o quê?” (311c) Hipócrates parece que agora entendeu e responde que é para ser médico. Sócrates com outros exemplos insiste na questão da profissão daquele que quer ensinar algo: o escultor ensina a fazer esculturas, um poeta poesia. Porém e um sofista, indaga Sócrates (311e-312a). Diante da vergonha do jovem que parece não saber o que faz um sofista, Sócrates insere uma distinção quanto fim alcançado pelo ensino:

Sócrates – Mas talvez, Hipócrates, sejas de parecer que os teus estudos com Protágoras visem a outra finalidade, como se deu com os que fizeste com os professores de gramática, de cítara e de ginástica? Não tomaste lições com cada um deles por amor à técnica, com o fito de exercer determinada profissão, mas apenas para fins educativos, com convém a um jovem particular e livre. (321b-c)

As possibilidades de trabalhar este trecho na escola são inúmeras. Notem que a própria estrutura do diálogo remete ao ambiente escolar. Protágoras ensina na casa de Cálias, uma casa adaptada para o ensino.1 Percebam também que é o aluno, Hipócrates, que quer aprender com Protágoras e não Protágoras que quer ensinar algo a Hipócrates ou Sócrates. Porém este jovem reconhece que a distância entre ele e Protágoras é enorme e, por isso, pede que Sócrates o auxilie, dada sua proximidade com Hipócrates. Um dos efeitos da educação é aproximar o aluno do professor, ou seja, o aluno pode aprender com o professor para ser como ele, se o professor for médico o aluno pode ser médico; se for escultor, escultor; se poeta, poeta. Mas não é só para isso que se aprende, pode-se aprender também para ser alguém particular e livre, ou, nos nossos termos, para ser um cidadão conhecedor da sociedade em que vive.2
Outro trecho interessante é:

Sócrates – sabes o que estás na iminência de fazer, ou não o percebes?
Hipócrates – a respeito de quê?
Sócrates – Pois resolveste entregar tua própria alma aos cuidados de um homem que, conforme disseste, é sofista; mas o que seja, de fato, sofista, muito me admiro se o souberes. Ora, se ignoras isso, também não poderás saber a quem entregas tua alma, nem se é para teu bem ou para mal. ()

Sócrates, percebendo que Hipócrates não sabe muito bem o que ensina um sofista, problematiza a relação entre professor e aluno: o aluno entrega sua alma para que o professor possa preenchê-la de conhecimentos. Porém, continua Sócrates, quando se entrega o corpo a um professor de ginástica temos que estar atentos se ele será capaz de deixá-lo mais forte e consultar amigos que nos ajude nesta avaliação. Do mesmo modo para com um médico ou um comerciante de alimentos. No caso destes últimos, diz Sócrates:

Os mantimentos e bebidas adquiridos nalgum vendedor ou traficante podem ser transportados em qualquer vasilha, e antes de passarem para o corpo, com serem comidos e bebidos, remanesce sempre a possibilidade de poderem ser guardados em casa e de ser chamado algum conhecedor do assunto, para opinar sobre quais devam ser ingeridos e quais não, a quantidade e o tempo certo, de forma que não há grande perigo nessa compra. Os conhecimentos, porém, não podem ser transportados em vasilha alguma; um vez pago o preço, forçoso é que, com as aulas, os recolhas na própria alma e que te retires, ou grandemente prejudicado ou beneficiado. Aconselhemos-nos com pessoas mais velhas do que nós; ainda somos muito moços para tomarmos qualquer deliberação sobre assunto de tamanha relevância (314ab)
1 Bolzani descreve discute a descrição que é feita da casa de Cálias.
2 Este talvez seja o maior desafio para um professor de filosofia: como entender nosso mundo e explicá-lo para o aluno. Claro que esta tarefa não é exclusiva para um professor de filosofia, pelo contrário, todos os professores de todas as áreas do saber humano devem contribuir. O que talvez seja particular do professor de filosofia seja a capacidade de encontrar conexões entre as áreas do saber, assim a aula de filosofia pode ser um momento de junção, ou como gostam alguns educadores, um momento de interdisciplinaridade. O momento onde todos os conhecimentos adquiridos até aquele momento podem ser juntados e pensados de um modo mais real e não artificial e fracionado.

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