Partilhamos
com estes historiadores das suas reticências. Não obstante,
apoiamo-nos nos dignos exemplos de historiadores que não se furtam à
urgente tarefa1;
e mãos à obra: vamos tentar aqui conversar sobre o hoje,
procurando “(...) reencontrar o jogo múltiplo da vida, todos os
seus movimentos, todas as suas durações, todas as suas rupturas,
todas as suas variações.”2Vivemos
o tempo dos acirramentos da polarização latente, e – ainda mais
nesses momentos – não tomar partido é tomar o partido da ordem. E
essa ordem é nefasta, injusta e deve ser derrubada. Temos aqui,
portanto, um objetivo declarado: tecer algum tipo de discurso
que possa servir hoje para a constituição de uma sociedade
mais igualitária e mais livre3.
1Hobsbawm,
Wallerstein, etc
2Fernand
Braudel – História e Ciências Sociais. A longa
duração, [Annales
E.S.C. Nº4 out-dez
1958]republicado em Escritos sobre a História
[1ª ed. 1969: Flamarion Paris] trad. J. Guinburg e Tereza Cristina
Silveira da Mota. São Paulo. Ed. Perspectiva, 2005. 1ª reimp. da
2ª ed. De 1992. p. 71
3Foucault
e Deleuze, Os intelectuais e o Poder.
e
No
início do diálogo Hipócrates, jovem ateniense, convence Sócrates,
não tão jovem, a intervir junto a Protágoras para que o sofista
ensinasse a ele a ser sábio. Antes, porém de ir à casa de Cálias,
lugar onde Protágoras está ensinando, Sócrates o convida para
passear e conversar. A primeira pergunta que Sócrates faz para
Hipócrates usando o exemplo do médico que também chama-se
Hipócrates é: “com qual intenção vais pagar salário a
Hipócrates?” (311c) Hipócrates parece que não entende a
pergunta, então Sócrates esclarece: “para que vires a ser o quê?”
(311c) Hipócrates parece que agora entendeu e responde que é para
ser médico. Sócrates com outros exemplos insiste na questão da
profissão daquele que quer ensinar algo: o escultor ensina a fazer
esculturas, um poeta poesia. Porém e um sofista, indaga Sócrates
(311e-312a). Diante da vergonha do jovem que parece não saber o que
faz um sofista, Sócrates insere uma distinção quanto fim alcançado
pelo ensino:
Sócrates – Mas talvez,
Hipócrates, sejas de parecer que os teus estudos com Protágoras
visem a outra finalidade, como se deu com os que fizeste com os
professores de gramática, de cítara e de ginástica? Não tomaste
lições com cada um deles por amor à técnica, com o fito de
exercer determinada profissão, mas apenas para fins educativos, com
convém a um jovem particular e livre. (321b-c)
As possibilidades de
trabalhar este trecho na escola são inúmeras. Notem que a própria
estrutura do diálogo remete ao ambiente escolar. Protágoras ensina
na casa de Cálias, uma casa adaptada para o ensino.1
Percebam também que é o aluno, Hipócrates, que quer aprender com
Protágoras e não Protágoras que quer ensinar algo a Hipócrates ou
Sócrates. Porém este jovem reconhece que a distância entre ele e
Protágoras é enorme e, por isso, pede que Sócrates o auxilie, dada
sua proximidade com Hipócrates. Um dos efeitos da educação é
aproximar o aluno do professor, ou seja, o aluno pode aprender com o
professor para ser como ele, se o professor for médico o aluno pode
ser médico; se for escultor, escultor; se poeta, poeta. Mas não é
só para isso que se aprende, pode-se aprender também para ser
alguém particular e livre, ou, nos nossos termos, para ser um
cidadão conhecedor da sociedade em que vive.2
Outro trecho
interessante é:
Sócrates – sabes o que estás
na iminência de fazer, ou não o percebes?
Hipócrates – a respeito de
quê?
Sócrates – Pois resolveste
entregar tua própria alma aos cuidados de um homem que, conforme
disseste, é sofista; mas o que seja, de fato, sofista, muito me
admiro se o souberes. Ora, se ignoras isso, também não poderás
saber a quem entregas tua alma, nem se é para teu bem ou para mal.
()
Sócrates,
percebendo que Hipócrates não sabe muito bem o que ensina um
sofista, problematiza a relação entre professor e aluno: o aluno
entrega sua alma para que o professor possa preenchê-la de
conhecimentos. Porém, continua Sócrates, quando se entrega o corpo
a um professor de ginástica temos que estar atentos se ele será
capaz de deixá-lo mais forte e consultar amigos que nos ajude nesta
avaliação. Do mesmo modo para com um médico ou um comerciante de
alimentos. No caso destes últimos, diz Sócrates:
Os mantimentos e bebidas
adquiridos nalgum vendedor ou traficante podem ser transportados em
qualquer vasilha, e antes de passarem para o corpo, com serem comidos
e bebidos, remanesce sempre a possibilidade de poderem ser guardados
em casa e de ser chamado algum conhecedor do assunto, para opinar
sobre quais devam ser ingeridos e quais não, a quantidade e o tempo
certo, de forma que não há grande perigo nessa compra. Os
conhecimentos, porém, não podem ser transportados em vasilha
alguma; um vez pago o preço, forçoso é que, com as aulas, os
recolhas na própria alma e que te retires, ou grandemente
prejudicado ou beneficiado. Aconselhemos-nos com pessoas mais velhas
do que nós; ainda somos muito moços para tomarmos qualquer
deliberação sobre assunto de tamanha relevância (314ab)
1
Bolzani descreve discute a descrição que é feita da casa de
Cálias.
2
Este talvez seja o maior desafio para um professor de filosofia:
como entender nosso mundo e explicá-lo para o aluno. Claro que esta
tarefa não é exclusiva para um professor de filosofia, pelo
contrário, todos os professores de todas as áreas do saber humano
devem contribuir. O que talvez seja particular do professor de
filosofia seja a capacidade de encontrar conexões entre as áreas
do saber, assim a aula de filosofia pode ser um momento de junção,
ou como gostam alguns educadores, um momento de
interdisciplinaridade. O momento onde todos os conhecimentos
adquiridos até aquele momento podem ser juntados e pensados de um
modo mais real e não artificial e fracionado.
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