As psiques de João Rubinato
Desde Freud – com o inconsciente – e depois com Foucault – com a formação dos discursos filosóficos e literários – quando da tentativa de compreensão da obra de arte, a análise sobre o papel do autor assumiu um relevância muito maior em relação à própria obra de arte. Ou, ao menos, ele – o autor – passou a ser uma importante entrada para a análise de uma obra. Assim, identificar as opções políticas, a história pessoal, os gostos, os comportamentos e os pensamentos do autor, passou a ser um importante elemento na crítica de qualquer obra de arte. Por exemplo, quando um artista se diz “de esquerda”, os críticos procuram em sua obra elementos que representem esta posição, excluindo o que é contraditório, isto é, o que não combina com o que se entende por esquerda. Desse modo, ocorre uma classificação da obra de arte e do artista que a criou. Outra prática corrente é reduzir o artista à sua obra “mais importante”. É o caso de Platão. A história da filosofia privilegiou a República como a sua obra mais importante. Para ser mais exato, o momento em que Sócrates defende que, para uma cidade ser justa, é preciso que o filósofo seja rei ou o rei filósofo. A partir desse momento, Platão é tido como autoritário e todas as suas obras são lidas com esse viés.
Porém, a caracterização do homem e do cidadão Platão não é tão fácil de ser definida, uma vez que o próprio Platão sequer aparece em seus diálogos: as falas sempre pertencem aos seus personagens. Do mesmo modo, com João Rubinato – também conhecido como Adoniran Barbosa, ou como o autor de Trem das Onze – a classificação também não é imediata. A partir de determinado momento de sua carreira, inclusive, passou a utilizar, preponderantemente, o nome de um de seus personagens: Adoniran Barbosa. Certamente abandonou seu nome de batismo, que julgava “macarrônico demais para um sambista”; e por muitas vezes se apresentou como Zé Conversa, Barbosinha Mal-Educado da Silva ou Charutinho – alguns de seus mais famosos personagens. Aliais, ele próprio se classificava mais como ator do que qualquer outra profissão que ele tenha exercido, inclusive a de cantor e compositor. Paradoxalmente, é próprio de um ator essa característica de representar – quando não, viver – várias vidas em apenas uma. Se for assim, João Rubinato também é cantor, compositor, músico, carpinteiro, etc. Mas podemos ver na obra do ator confesso algo que seja próprio do homem João Rubinato?
Para ajudar-nos nessa difícil tarefa vamos ouvir alguns comentários acerca de outros autores, que como Adoniran criam seus personagens. Primeiro vejamos o que Marques fala de Platão:
“Os personagens criados por Platão, mais do que simples recurso de expressão, constituem um esforço para tornar explícitas e inteligíveis atitudes éticas e posições teóricas fundamentais, detectáveis entre os cidadãos, artesãos, homens políticos, poetas e pensadores de sua época.” (p.40)
E mais adiante ele completa:
“A ‘alterização de si’, através da (re)invenção de personagens, é um modo de desdobrar e desenvolver os logos (teses, discurso, argumentos) que falam, sem voz, em sua alma.”
Assim, para Marques, a criação de personagens não é apenas um recurso literário de Platão. Ele não está fazendo literatura – muito menos para nós, leitores do século XXI. Platão quer apresentar os ‘personagens’ da sua época, ou mais que isso, ele quer relacionar os pensamentos com as ações. Ele quer nos mostrar não só como pensa um político, um sofista, um orador, ele também quer que possamos reconhecer na nossa sociedade e em nós mesmos. Claro que para isso ele precisou reconhecer que nele próprio havia algo de cada um deles. Platão foi um pouco político, sofista, orador, filósofo, poeta. Ele pretendeu, com sua obra – os diálogos – dar voz a todos, não só para pensar, mas também para agir, ou melhor, para que a linguagem torne-se ação e a ação possa ser clareada pela linguagem.
Bakhtin, noutro contexto, diz algo nessa mesma linha quando afirma que:
“é nesse sentido que um autor modifica todas as particularidades de um herói, seus traços característicos, os episódios de sua vida, seus atos, pensamentos, sentimentos, do mesmo modo que na vida.” (2000, p.25)
E depois que:
“o autor reflete a posição emotivo-volitiva de seu herói e não a sua própria atitude para com o herói... o herói daí em diante tornou-se independente de seu criador, e o autor, por sua vez, também se tornou independente dele – homem, crítico, psicólogo ou moralista.” (2000, p.28 e 29)
Para Bakhtin o autor cria seu herói com aquilo que lhe é particular, porém, nessa construção, o herói cria vida própria, ganha uma psique que não coincide com a psique do autor. Assim as ações, os pensamentos, a linguagem, as relações e a vida do herói são diferentes das de seu autor.
Assim, tanto Platão para Marques, como um bom autor – no caso Dostoievski – para Bakhtin – como o criador dos ‘Sambas das Malocas’ – não transferem simplesmente para seus personagens os seus próprios pensamentos, mas, ao contrário, utilizam-se de outros para pensar por si mesmos. É claro que neste movimento de pensar pelo outro algo de si permanece. Portanto, o outro, mesmo sendo um outro, não deixa de ser o próprio.
Vejamos um exemplo disso na música Despejo na Favela. Nessa música, o narrador, um morador de uma favela, narra que o oficial de justiça, a mando de um Juiz – e que, portanto, não pode participar da decisão, que entregou para seu Narciso – provavelmente o líder da comunidade – por meio de uma petição: “Vocês tem dez dias para desocupar este terreno que não é propriedade de vocês”. Com essa petição seu Narciso – ou o narrador, não podemos determinar de modo absoluto – diz para o oficial de justiça que eles não precisam de 10 dias, um dia basta para eles deixarem a única coisas que possuíam.
Tudo parecia terminar bem, a comunidade, na voz do seu representante – ou do narrador que a representa aqui para a posteridade, fazendo história – indicava para o representante do Juiz que eles iriam acatar a ordem, quando porém que surpreendentemente o narrador – ou seu Narciso – diz o seguinte: “eu sei que construímos nosso barracão numa área que ainda não tinha dono, sabemos disso, a questão não é quem é o dono da terra, a questão é esse povo aí que veio de todos os lugares desse Brasilsão em busca de um lugarzinho para descansar depois de um dia inteiro de trabalho em prol do desenvolvimento do Brasil, nosso Brasil, essas pessoas vão para onde? Me responde dotô?”
Essa fala desesperada é de quem? Será a fala do filho de Francesco Rubinato e Emma Ricchini, imigrantes italianos? É de algum João da Silva? É do João Rubinato transfigurado em Adoniran Barbosa? É da Beth Carvalho, que tantas vezes interpretou Adoniran? É do tio Beiço, cantor campineiro da nossa época que tantas vezes cantou essa música? É minha, porque a escrevi? É sua, porque a lê e a canta? De quem é a porra da frase que pergunta para uma suposta autoridade para onde vai o povo brasileiro???!!!
Antes de qualquer coisa temos que dizer algo obvio mas que nem sempre é dito: esta frase está dentro de uma música, por isso, quando cantada, pertence aquele que a canta. Talvez Adoniran pensasse e sentisse que ela representa um morador de favela que tenha para onde ir. Talvez Beth Carvalho interprete com outro sentido: talvez ela, como boa marxista, ache que se não abolirmos a propriedade privada não seja possível ir a lugar algum. Talvez o Tio Beiço cante pensando nos amigos favelados que conheceu e que não tenham para onde ir. Talvez eu cante pensando no desespero de migrantes, como meu pai e minha mãe, que viram a situação das favelas de São Paulo e por isso optaram em comprar um terreninho em Campinas para construir sua casa. Talvez você pensa nas milhares de pessoas que estão vivendo em condições desumanas.
Percebemos que a letra de João Rubinato vai além da simples opinião de algum morador de uma favela. Não que ele não tenha que ser escutado, todos temos. Mas Adoniran vai além quando mistura as falas do narrador e do seu Narciso e surpreende o oficial de justiça perguntando algo que exige uma resposta que não pode ser respondida.
Os espelhamentos das psiques de Adoniran
Se Adoniran só fizesse isso que apontamos acima, isto é, universalizar as falas de tipos paulistanos, dando a eles voz e vez, já seria considerado um grande artista. Poderíamos dizer que ele atente às exigências de Bakhtin e por isso poderia ser comparado a Dostoievski[1]. Porém, nosso paulistano caipira não fica só nisso, ele consegue fazer esses tipos se relacionarem. Antes de vermos isso em sua obra, vamos repetir o procedimento de comparação anterior e observar o que já foi dito sobre Dostoievski e sobre Platão.
No primeiro, Bakhtin diz o seguinte:
“os heróis são distribuídos pelo enredo e apenas numa base concreta determinada podem reunir-se uns aos outros. As relações de reciprocidade entre eles são criadas pelo enredo e concluídas pelo próprio enredo” (1997, p.104).
E depois:
“O parodiar é a criação do duplo destronante, do mesmo ‘mundo às avessas’. Por isso a paródia é ambivalente. A antiguidade, em verdade, parodiava tudo: o drama satírico, por exemplo, foi inicialmente um aspecto cômico parodiado da trilogia trágica que o antecedeu... isso parecia construir um autêntico sistema de espelhos deformantes: espelhos que alongam, reduzem e distorcem em diferentes sentido e em diferentes graus... Os duplos parodiadores tornaram-se um elemento bastante freqüente, inclusive na literatura carnavalizada. Isto se manifesta com nitidez especial em Dostoievski: quase todas as personagens principais dos romances dostoievskianos têm vários duplos, que as parodiam de diferentes maneiras. Raskolnikov tem como duplos Svidrigailov, Lujin, Libezyalnikov.” (1997, p.127-128)
Bakhtin, ao analisar os personagens de Dostoievski, aponta que em primeiro lugar o herói, o personagem principal, precisa ser colocado dentro de um enredo onde haja reciprocidade entre ele e os outros personagens. Para tanto, as características do personagem central precisam ser espelhadas nos outros personagens, isto é, cada uma das particularidades do herói precisa de um outro personagem para se tornar evidente. O ator principal sempre precisa de atores coadjuvantes, cujas personalidades correspondam a fragmentos da personalidade do primeiro.
Também isso ocorre em Platão. Vejamos dois exemplos. No diálogo Protágoras o personagem principal, Sócrates, tem como duplo o próprio Protágoras. Eles discutem acerca da possibilidade de ensino da virtude política. Cada um deles, inicialmente, representa uma posição acerca da possibilidade ou não da virtude ser ensinada, Protágoras, a primeira; Sócrates, a segunda. No final do diálogo, eles já não sabem qual é a posição de quem. Isso leva Sócrates a concluir que eles trocaram de posição: ele, Sócrates, passara a achar que a virtude política pode ser ensinada; aquele, Protágoras, muda de opinião, e passa a achar que a virtude não pode ser ensinada. Poderíamos dizer que na disputa argumentativa dos dois o resultado foi o empate, mas, na verdade, quem ganha é o leitor que pode ver duas posições acerca do ensino da virtude, suas conseqüências, suas limitações, seus desdobramentos.
Achamos que nos diálogos de Platão há espelhos por todos os lados, onde Sócrates talvez seja o maior refletor. Talvez o diálogo onde isso é mais explicito seja o diálogo Alcebíades. No final desse diálogo, Sócrates fala para Alcebíades se espelhar nele e procurar o conhecimento antes de ir à Ágora. Na verdade, Sócrates pede para Alcebíades procurar com ele, por meio do diálogo, o conhecimento de si. O conhecimento de si é procurado na medida em que ambos, Sócrates e Alcebíades, constroem um ou mais saberes, entre eles a arte, a ciência, os valores morais e as leis necessárias para cidade.
Vejamos um exemplo de um espelhamento criado pelo nosso paulistano de Valinhos.
A música Triste Margarida evidencia o relacionamento de um homem e uma mulher que, ao que tudo indica, estão na mesma ‘classe’ social. Ele, percebendo que ela não o namoraria se dissesse que sua profissão era de jardineiro, mente para moça dizendo que é engenheiro. Ela, por desconhecimento das características de um engenheiro, acredita inicialmente na mentira. A mentira dura até a moça ver o jardineiro no exercício da sua profissão. A música diz que a moça não quer mais saber do jardineiro, saber por quê? Talvez ela tenha tomado consciência de que havia acreditado numa mentira estúpida e que um engenheiro de metrô, aquele que traz o progresso e a velocidade no deslocamento para a cidade, não poderia se interessar por uma moça simples. O jardineiro representaria, assim, o limite das relações amorosas que essa moça poderia ter. Talvez, por outro lado, ela não tenha ficado com raiva dele, mas tenha ficado com raiva de si mesma e Adoniran, com essa música, estaria evidenciando a mulher que quer um status social diferente do que tem e o homem que para ‘ganhar’ a moça do seu status social precisa dizer que está em outro. Qual dos dois é mais orgulhoso? Qual dos dois é mais convencido? Qual dos dois é mais mentiroso?
Para concluir voltemos a pergunta: podemos ver na obra do ator confesso algo que seja próprio do homem João Rubinato?
Um grande autor, como notou Bakhtin não fala em nome próprio, ele fala algo que não poderia deixar de ser falado, ele fala o óbvio, ele fala em nome de todos. E como ele consegue isso?
João Rubinato, ao longo de sua vida, foi se relacionando com diversas pessoas. A cada uma delas ele foi absorvendo o jeito, o modo de pensar, os trejeitos, não apenas para imitar, mas também para pensar, para sentir, para viver. Podemos até dizer mais, talvez até inconscientemente, ele procurava espelhos de referência. Ele talvez procurasse nas pessoas aquilo que lhe faltava. Como Sócrates, talvez Adoniran procurasse construir com as pessoas que se relacionava – entre eles, Ernesto, o grupo Demônios da Garoa, o produtor Osvaldo Molles, a cantora Elis Regina – uma arte, um modo de vida. E a recíproca também é verdadeira, todos os que se relacionaram com o Barbosinha Mal-Educado da Silva talvez também buscassem nele esse propósito.
Se assim o for, o João Rubinato, que nasceu em 6 de agosto de 1910 em Valinhos não é o mesmo Adoniran que morreu em 23 de novembro de 1982 em São Paulo. Ou melhor, a psique do jovem paulista não é a mesma do velho paulistano. Ela foi absorvendo outras psiques e deixando suas marcas, suas obras. O leitor que quiser ter mais clareza de cada uma delas pode agora buscá-las em biografias, ouvindo os discos, ouvindo ou lendo os diálogos que ele ajudou a criar, pode procurar amigos que o conheceram.
Gostaríamos, por fim, de destacar que quando desejamos absorver uma obra de arte, duas situações podem ser notadas. A primeira é que não estamos satisfeitos com nossa psique, por isso, precisamos buscar em outras psiques algo que nos completa. A segunda, que ao absorvermos algo que outra psique produziu, nossa psique fica diferente. Tornamo-nos um outro que não nós mesmos. Ou, para sermos mais precisos e menos alarmistas: nos tornamos um “nós mesmos” diferentes Nesta situação temos dificuldade de nos reconhecer e daí a necessidade de outros espelhos, de outras psiques que nos digam o que somos. Há quem chame isso de aprendizado
[1] Inclusive Fernando Faro no programa Mosaico da TV Cultura fala que as músicas de Adoniran representam para nós brasileiros o que Dostoievski representa para os russos.