Sugestões gerais de como inserir a investigação sobre Ética no Ensino Médio
Algumas perguntas se fazem necessárias quando pensamos em filosofia ética: quais são os valores de nossa época? Quais os costumes que temos? Como nascemos, crescemos, nos alimentamos, passamos para a vida adulta, casamos, temos filhos e por fim morremos? O que justifica esses costumes? Quais as teorias que os sustentam? Ou, em outros termos, quais são as éticas do nosso tempo?
Depois de investigarmos nossos costumes a partir dessas perguntas, podemos pesquisar a origem filosófica de cada uma das éticas praticadas na nossa época. Identificado o filósofo, podemos pesquisá-lo e discutir quando dele foi absorvido e manteve-se em nossa época e, talvez, criticar os valores de nossa época pelo olhar deste filósofo. Isso com o máximo de filósofos possíveis. Depois disso podemos classificá-los. Para tanto precisamos encontrar elementos que permitam uma certa aproximação, algum elemento que nos permita medi-los. Depois podemos confrontá-los e investigar o resultado do enfrentamento dessas teorias éticas.
Reconstrução do momento inicial do diálogo Protágoras pensando em como ele nos ajudaria nas discussões sobre Ética
O diálogo Protágoras apresenta uma narração de Sócrates a um amigo que quer saber o motivo dele ter deixado de lado a beleza de Alcebíades para conversar com o sofista Protágoras. Sócrates então começa a narrar que um amigo jovem, Hipócrates, pediu para que ele o acompanhasse no seu intuito de aprender com Protágoras. Sócrates aceitou o desafio, mas antes testou o jovem aprendiz. A primeira pergunta de Sócrates que podemos também fazer aos nossos alunos é: você vai pagar Protágoras para que ele te ensine o que? Que profissão Protágoras te ensinaria? Como o jovem Hipócrates se acanha, Sócrates problematiza ainda mais a questão: é possível aprender não para ser um profissional, mas para fins educativos, para ser um grego cidadão e livre.[1]
Depois de uma última questão constrangedora, Sócrates apresenta elementos que vão ajudar a Hipócrates a verificar os conhecimentos aprendidos com Protágoras. Sócrates constrange o jovem perguntando se ele sabe o que está fazendo ao entregar sua alma a Protágoras. O cuidado com a alma, começa a apontar Sócrates, pode ser o mesmo que temos quando cuidamos do corpo: procuramos alguém que é capaz de deixá-lo mais forte, além de consultarmos amigos que tenham se exercitado com ele. Outro ponto importante para Sócrates decorre do fato do sofista ser um comerciante e, como tal, nem sempre ele sabe se aquilo que está vendendo é útil ou não. Diferente do alimento para o corpo que pode ser transportado para casa e lá podemos com calma consumi-los, o alimento para a alma, isto é, o conhecimento, precisa ser adquirido na hora, no momento em que está sendo comprado. Por isso, do mesmo modo que com o alimento para o corpo nos preocupamos com a forma que vamos igerí-lo, a quantidade e em que momento, e para tanto consultamos os mais velhos, para o alimento da alma o cuidado precisa ser o mesmo.
Se continuássemos na leitura do diálogo veríamos que muitas são as entradas para discuti-lo no universo escolar, vamos aqui indicar algumas, uma vez que nosso projeto é desenvolve-las com mais calma pensando na aplicação em sala de aula.
Sócrates no livro da Marilena Chauí
Marilena Chauí em seu manual voltado ao Ensino Médio destina a décima unidade para tratar da Ética.[1] Esta unidade é composta de 3 capítulos. No primeiro, ela apresenta os conceitos fundamentais para este tema; no segundo, investiga algumas teorias filosóficas sobre este tema; no terceiro, ela desenvolve uma discussão sobre o tema liberdade.
Como nosso interesse aqui é mostrar, por um lado, a simplificação e, conseqüentemente, a diminuição da filosofia platônica, como critica Benoit em seus textos, e por outro lado, a sua potência para uma proposta de ensino de filosofia para nossa época, vamos ficar restritos ao capítulo 27, ou melhor, para sermos mais precisos, vamos discutir a reconstrução e o uso que ela faz da filosofia de Platão no tema em questão. Ela inicia a parte destinada a exposição da filosofia ética de Platão assim:
Percorrendo praças e ruas de Atenas – contam Platão e Aristóteles -, Sócrates perguntava aos atenienses, fossem jovens ou velhos, o que eram os valores nos quais acreditavam e que respeitavam ao agir. As perguntas socráticas terminavam sempre por revelar que os atenienses respondiam sem pensar no que diziam. Repetiam o que lhes fora ensinado desde a infância. (2010, p.271)
Ela continua sua exposição dizendo que cada um daqueles que Sócrates interrogava falava coisas diferentes sobre os costumes da cidade de Atenas. Assim, para ela, aquele que dialogava com Sócrates ou se zangava com ele ou reconhecia que não sabia.[2] Àqueles que conseguia dialogar, examinava em conjunto as essências das virtudes.
Se, por um lado, continua ela, Sócrates questionava os costumes, por outro, também indagava acerca do caráter do individuo. Assim, “a indagação ética socrática dirige-se, portanto, à sociedade e ao indivíduo” (2010, p.271).
Sem dizer, Chauí parece trabalhar aqui com a República, lugar onde Platão desenvolve uma complexa teoria sobre a alma e a cidade que, para nos, poderia ser muito melhor aproveitada.
Por fim, ela termina sua rápida exposição da filosofia ética platônica que, para ela, coincide com a de Sócrates:
As questões socráticas inauguram a ética ou filosofia moral porque definem o campo no qual valores e obrigações morais podem ser estabelecidos pela determinação de seu ponto de partida: a consciência do agente moral. É sujeito ético ou moral somente aquele que sabe o que faz, conhece as causas e os fins de sua ação, o significado de suas intenções e de suas atitudes e a essência dos valores morais. Sócrates afirma que apenas o ignorante é vicioso ou incapaz de virtude, pois quem sabe o que é bem não poderá deixar de agir virtuosamente. (2010, p.271)
Já aqui, nos parece que ela está trabalhando com o diálogo Protágoras, ou, para sermos mais precisos, com uma dada interpretação deste diálogo. Esta interpretação ignora o final aporético do diálogo e, recortando-o de maneira arbitrária, tenta provar que Platão defende que o conhecimento das virtudes é necessário para a prática delas. Adiante voltaremos a este diálogo.
Voltando a Chauí, pensamos que no capítulo primeiro ela apresenta uma técnica interessante para nossos propósitos, ela usa Platão para discutir nossa época. Assim, neste capítulo intitulado A atitude filosófica, ela, usando o mito da caverna e o filme Matrix, afirma que a filosofia visa criticar nossas crenças costumeiras. Usando o que expôs de Platão nas páginas anteriores, ela apresenta algumas questões da nossa época:
E se, em vez de afirmar que gosta de alguém porque esse alguém possui as mesmas idéias que ela, os mesmos gostos, as mesmas preferências e os mesmos valores, preferisse analisar: ‘O que é um valor?’, ‘O que é um valor moral?’, ‘O que é um valor artístico?’, ‘O que é a moral?’, ‘O que é a vontade?’, ‘O que é a liberdade?’ (2010, p.17)
Ela então encerra este capítulo com a seguinte pergunta: ‘Explique o que são as nossas crenças costumeiras’ (2010, p.17).
Apesar de acharmos fundamental esta abordagem, ou seja, usar as categorias criadas por um determinado filósofo para discutir questões da nossa época, nos parece que ela poderia ir além do que foi. Nos parece que os diálogos de Platão num primeiro lugar apresentam quais são os valores morais de sua época, para só depois procurar quem melhor poderia responder por eles. Isto é, depois de selecionar os valores, Platão o personifica criando uma personagem para representá-lo, usando, para tanto, pessoas conhecidas da cidade de Atenas de sua época. Num segundo momento, Platão utiliza-se de Sócrates para criticar tanto os valores como seus representantes. Assim, um exercício correspondente a essa prática poderia ser: ‘quais são os valores de nossas crenças costumeiras?’; ‘Quem as representa? ou ‘quem pode falar sobre elas?’; ‘Quais seriam as posições contrárias a elas?’; ‘Como seria um diálogo entre estas posições?’
Vejamos como o Caderno do Estado aborda o tema. O Caderno do Estado introduz o diálogo Protágoras na situação 6 do volume 1 da 3ª série do Ensino Médio com o título ‘O homem como ser político’.[3]
A justificativa para o uso dele é:
Um dos diálogos de Platão (428 a.C.-347 a.C.) apresenta uma das teses mais antigas sobre a arte política. Além de antiga, ela tornou-se um marco na história da Filosofia. O diálogo chama-se Protágoras, e a tese sobre a virtude política encontra-se no trecho que ficou conhecido como o Mito de Protágoras. (livro do professor, 2014-2017, p. 53)
Uma imprecisão nos chama a atenção: qual é a tese mais antiga sobre a arte política? Talvez o texto esteja se referindo a possibilidade de ensino da virtude política, posição que o personagem Protágoras defende no diálogo de Platão que leva seu nome. Em nenhum momento do livro do professor nem do aluno o autor apresenta a temática principal do diálogo, a saber, a possibilidade ou não do ensino da virtude política. Se o caderno do Estado não se refere a isso, muito menos ele diz que a primeira opção é defendida por Protágoras, enquanto a segunda é defendida por Sócrates. Assim, sem explicar o texto e com um comentário pobre e por vezes equivocado, o autor deste material didático apresenta alguns trechos das falas iniciais de Protágoras. O texto recortado ficou conhecido como Mito de Prometeu e Grande Discurso.
Além das críticas apontadas acima, pensamos haver inúmeros os problemas neste livro didático, entre eles: problema de tradução, a diferença de exposição de Platão frente a outros filósofos, o não aproveitamento de partes importantes do texto, a não extensão dos problemas apresentados pelo diálogo que poderiam ser aprofundados, entre outros.
Vejamos, com um pouco mais detalhe, estas últimas críticas: no início do diálogo Hipócrates, jovem ateniense, convence Sócrates, não tão jovem, a intervir junto a Protágoras para que o sofista ensinasse a ele a ser sábio. Depois de conversarem um pouco sobre quais os objetivos da educação Sócrates diz o seguinte:
Sócrates – sabes o que estás na iminência de fazer, ou não o percebes?
Hipócrates – a respeito de quê?
Sócrates – Pois resolveste entregar tua própria alma aos cuidados de um homem que, conforme disseste, é sofista; mas o que seja, de fato, sofista, muito me admiro se o souberes. Ora, se ignoras isso, também não poderás saber a quem entregas tua alma, nem se é para teu bem ou para mal. (321b-c)
Gabioneta (2013, p.17-18) comenta este trecho e o seguinte deste modo:
Sócrates continua dizendo que se fosse expor o corpo ao risco de estragá-lo ou deixá-lo mais forte, deveria refletir sobre o assunto e também consultar parentes e amigos, porém, como o que está em jogo na aprendizagem com Protágoras é a alma, estes e outros cuidados devem ser tomados. Um deles decorre do fato do sofista ser um comerciante, uma vez que ele vende um produto. Desse modo, como todo comerciante, o sofista elogia em demasia o que vende (313d). Outro cuidado que deve ser observado é verificar se entre os vendedores há aqueles que sabem como exercitar a alma, tal como ocorre com um professor de ginástica; ou curá-la, no caso de já ter sido adquirido algum conhecimento que a prejudique, tal como ocorre quando procuramos um médico para cuidar do nosso corpo (314d). No caso de conhecer, continua Sócrates, o que “é vantajoso ou prejudicial para a alma, poderás comprar conhecimento sem perigo nenhum, não só de Protágoras como de qualquer outro sofista” (313e). A compra de alimento para a alma, alerta Sócrates, é diferente da compra de alimento para o corpo, pois este último pode ser transportado em potes e levado para casa e antes do alimento ser consumido, podemos consultar um especialista para nos informar sobre a quantidade e o tempo em que o alimento precisa ser ingerido. De maneira diferente, o alimento da alma precisa ser adquirido no momento da aula, uma vez que é a própria alma o pote (314ab). Porém, ainda que transportado direto na alma do aluno, este conhecimento deve passar pela avaliação de pessoas mais velhas (314b).
Pensamos que uma característica fundamental da educação é a manipulação de almas, ou se preferirmos uma linguagem menos metafísica, a transmutação, e não uma simples transmissão, de conhecimentos que a humanidade produziu. O professor supostamente possui um conhecimento que a sociedade julga que deve ser ofertado ao aluno. Se for isso, o diálogo alerta para algo importante: aquele que quer transmitir um saber ou é reputado para tanto, nem sempre sabe como este saber vai ser absorvido pelo seu aluno, assim, o aluno precisa se precaver e consultar o máximo de pessoas possíveis para atestar se aquilo será um mal ou um bem; se aquilo deixá-lo-á mais forte ou mais fraco; se este ‘produto’ deve ser ‘comprado’ ou não; se aquilo pode curá-lo de uma doença psíquica ou deixá-lo mais doente. Isso porque, conclui Sócrates e Gabioneta, o saber precisa ser ‘consumido’ na hora que ele é apresentado, ainda que o aluno deva, como qualquer outra pessoa, verificar aquilo que é ensinado, principalmente com os mais velhos.
ver link
http://www.umaconversasobrefilosofia.blogspot.com.br/2013/05/protagoras.html
[1] Uma primeira crítica a ser feita seria a ordem deste assunto. No nosso entender esse é o tema mais urgente da nossa época, por isso, para nos, deveria vir em primeiro lugar.
[2] Se lermos os diálogos por eles mesmos, como aponta Benoit, veremos que a reconstrução platônica da personagem Sócrates não é bem essa. Chauí dá a entender que Sócrates conversava com seus interlocutores do mesmo jeito e sobre os mesmos assuntos, o que não nos parece verdadeiro. Na verdade tanto os assuntos, como o modo de dialogar de Sócrates, bem como outras personagens criadas por Platão, eram variadas.
[3] A mesma critica que fizemos a Chauí cabe ao Estado.
[1] O primeiro termos, ser cidadão, é desenvolvido um pouco a frente deste trecho, já o segundo, a liberdade, é desenvolvido com mais detalhes no diálogo República.
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